19.6.17

Mergulho fundo no quase diário de Affonso Romano de Sant'Anna


Texto de Jorge Sanglard
Jornalista e pesquisador. Gerente do Acervo Técnico do Museu Mariano Procópio


Ensaísta, cronista, poeta e jornalista, aos 80 anos, Affonso Romano de Sant’Anna é um dos intelectuais mais influentes no Brasil contemporâneo. Sua geração viveu a utopia e o seu avesso, e o escritor tem declarado que é necessário rever o século XX, com todos os sonhos e equívocos, caso contrário, não entraremos no século XXI. Seu mais novo livro, Quase Diário (1980 - 1999), lançado pela LP&M, é um mergulho em duas décadas de registros de fatos marcantes de sua trajetória e teve como inspiração o dia da morte de Vinicius de Moraes, 9 de julho de 1980. Trata-se, segundo o autor, de um diário em progresso, que se faz enquanto se faz. É vida sem retórica. E, por isso mesmo, é pra ser lido em progressão, curtindo cada momento e estabelecendo conexões. E adverte: já tenho pronto o volume que vai de 2000 a 2010.
Em plena ditadura militar, em 1980, Affonso Romano de Sant'Anna lançou Que País é Este?, uma coletânea de poemas traçando um panorama crítico sobre a sociedade brasileira e que ganhou o Prêmio Jabuti. O poema/título do livro foi publicado com destaque no Jornal do Brasil e conquistou uma imensa repercussão, sendo traduzido para o espanhol, inglês, francês e alemão, transformado em posters até se tornar um ícone, capaz de incomodar e questionar a tudo e a todos. 37 anos depois da publicação, Que País é Este? permanece instigando o escritor e seus leitores e é uma leitura cada vez mais atual para se entender melhor o Brasil de ontem e de hoje. Enfático, Affonso Romano afirma: Eu vi as entranhas do poder. E não gostei. Agora, com esse Quase Diário mais um pouco desse Brasil diverso e controverso pode ser lido e revisto pelo olhar aguçado de quem se mostra antenado com seu tempo.
Affonso Romano de Sant'Anna lutou contra a ditadura militar entre as décadas de 1960 e 1980 e sempre foi uma voz indignada contra a opressão e a favor da liberdade. A função do intelectual, para ele, é interferir na história e no cotidiano. Afinal, argumenta, o mundo tornou-se mais complexo e a cultura da pós-modernidade é o culto do superficial, da cópia, do marketing, da fragmentação, dos falsos valores.
Em meio è violência nos grandes centros urbanos, o poeta vislumbra de sua janela no Rio de Janeiro as contradições da cidade partida e o desencanto com o abismo social no Brasil. Há uma década, na OAB Subseção Juiz de Fora, afirmou durante um debate sobre a violência urbana e a corrupção: "a ética está em ruína no país". Durante os seis anos em que presidiu a Fundação Biblioteca Nacional, entre 1990 e 1996, teve como atribuição maior a valorização da política do livro e da leitura, assegurando ter feito tudo o que se podia para o brasileiro ler mais. Incisivo, afirma: literatura é vida.
Nascido em Belo Horizonte, em 27 de março de 1937, e criado em Juiz de Fora, a partir dos três anos de idade, teve uma infância de menino pobre, trabalhando desde cedo como carregador de marmitas e de trouxas de roupas para lavadeiras, além de vender balas no colégio e no cinema para pagar seus estudos. No Grupo Escolar Fernando Lobo e no tradicional colégio metodista Granbery, iniciou a paixão pelos livros, que encontrava nas bibliotecas do Serviço Social da Indústria (Sesi) e do restaurante popular do Saps.
Como filho de pais protestantes, foi criado para ser pastor e, aos 17 anos, já pregava o evangelho em várias cidades do interior de Minas Gerais. Mas o jornalismo e a literatura falaram mais alto. No entanto, essa experiência foi decisiva para impregnar de forte conteúdo social sua prosa e sua poesia e, já em seu primeiro livro, “O Desemprego da Poesia”, um ensaio lançado em 1962, apontava o rumo da indignação. Seu primeiro livro de poesias, “Canto e Palavra”, foi editado em 1965. Durante dois anos, lecionou Literatura Brasileira na Universidade da Califórnia, em Los Angeles, e em 1968 voltaria aos Estados Unidos como bolsista do International Writing Program, em Iowa, onde permaneceu por dois anos e vivenciou as transformações de comportamento que marcaram o século XX.
Ao retornar ao Brasil, em 1969, defendeu a tese de doutorado “Carlos Drummond de Andrade, o Poeta ‘Gauche’, no Tempo e Espaço”, na Universidade Federal de Minas Gerais. Editada em 1972, esta tese deu projeção ao escritor, que conquistou importantes prêmios literários brasileiros. Intensificou na década de 1970 sua atuação como professor na Pontifícia Universidade Católica (PUC) e na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e, em 1976, articulou a vinda ao Brasil de renomados conferencistas internacionais, em plena ditadura militar, com destaque para o sociólogo francês Michel Foucault. Ainda nesse ano, voltaria novamente aos Estados Unidos e lecionaria Literatura Brasileira na Universidade do Texas. Dois anos mais tarde, já na Alemanha, lecionou Literatura na Universidade de Colônia, e lançou o livro “A grande fala do índio guarani”.
Na França, como professor visitante, lecionou durante dois anos, na Universidade Aix-en-Provence. E, a partir de 1984, passou a escrever no “Jornal do Brasil” a coluna anteriormente assinada por Carlos Drummond de Andrade. Em 1986, saiu publicado seu primeiro livro de crônicas, “A Mulher Madura”. Entre 1990 e 1996, presidiu a Fundação Biblioteca Nacional, onde iniciou a informatização do acervo, criou o Sistema Nacional de Bibliotecas e o Programa de Promoção da Leitura (Proler), espalhando mais de 30 mil voluntários em cerca de 300 cidades brasileiras, e passou a editar a revista “Poesia Sempre”. De 1993 a 1995, presidiu o Conselho do Centro Regional para o Fomento do Livro na América Latina e no Caribe (Cerlalc), e assumiu a secretaria geral da Associação das Bibliotecas Nacionais Ibero-Americanas, entre 1995/1996.
A geração de Affonso Romano de Sant'Anna foi educada com a ideia de que o Brasil era o país do futuro. E, segundo o escritor, "o ex-presidente Juscelino Kubitschek não se cansava de falar que o futuro era brasileiro. E a gente acreditava. Mas a história é uma coisa complicada. Todo lugar está cheio de problema, e a gente fica cheio de pasmo".
Desde o final dos anos 1990, o escritor vem doando parte de seu acervo de livros para a Biblioteca Municipal Murilo Mendes, em Juiz de Fora. E Juiz de Fora está aqui e ali nas páginas do livro. Em 12 de outubro de 1995, Affonso Romano de Sant'Anna voltou à cidade para uma conferência na Academia de Comércio. Os padres do Verbo Divino da Academia e os pastores metodistas do Granbery, onde Sant'Anna estudou, implantaram dois colégios de grande envergadura e, segundo o escritor, se tornaram referência de ensino em Minas. Affonso Romano sempre se lembra de Manuel Bandeira naquele poema sobre Juiz de Fora, sobretudo "seus bondes dando voltas vadias". E enfatiza: "Eu com minhas ansiedades, projetos, desejos, entre a igreja e o jornal, entre a literatura e as ruas de fim de bairro, fundando com amigos o Centro de Estudos Cinematográficos, grupos de poetas - o Pentágono 56, primeiros voos literários".
No dia seguinte, conta sua visita ao Museu Mariano Procópio, onde convidado por este jornalista foi entrevistado sobre a época em que vivia na cidade. Olhando aquelas jabuticabeiras, a casa/castelo que hospedava Pedro II, aquelas coleções de objetos imperiais do Museu Mariano Procópio, o escritor confessa: "Eu olhava tudo como se estivesse no Louvre...".

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