7.11.11

Cinco anos sem Dnar/ A arte como sentido da vida






(Segue aqui um texto do jornalista e pesquisador Jorge Sanglar sobre o artista plástico Dnar - uma justa e bela homenagem)

Há cinco anos, num novembro triste, Minas Gerais perdia o artista plástico Dnar Rocha, falecido na Juiz de Fora que o abrigou, desde meados do século XX, e o projetou no universo das cores. Desenhista e pintor, Dnar deixou como exemplo ter sido em vida um dos mais íntegros artistas que escolheram as margens do Paraibuna para realizar sua arte; e seu legado artístico é uma obra que poderia ser a síntese da pintura de Juiz de Fora. Do menino simples nascido na rural Tabuleiro, ao grande artista plástico em Juiz de Fora, a trajetória do mineiro Dnar Rocha (21/07/1932 – 24/11/2006), seja no desenho seja na pintura ou ainda na vida, teve como essência o humanismo e o olhar comprometido com os homens e as mulheres. De boiadeiro e prático de farmácia em Tabuleiro a barbeiro e contador em Juiz de Fora, Dnar trilhou vários caminhos para assegurar a subsistência, mas foi na descoberta da arte que encontrou a paixão maior e o sentido da vida.
Já nos primeiros desenhos, ainda nos tempos da barbearia do compositor B. O. (Alber de Oliveira Alves), antigo reduto da escola de samba Feliz Lembrança no bairro São Bernardo, Dnar revelava talento e vontade de alçar vôos mais altos. Por sugestão de um dos freqüentadores, que ganhara um retrato a lápis, conheceu a Sociedade de Belas Artes Antônio Parreiras, onde encontrou pintores que foram a fonte de inspiração para avançar e ampliar o conhecimento artístico e a técnica. Nesse tempo, meados dos anos 1950, a alma de desenhista e de pintor já assumia lugar definitivo em sua vida.
Como companheiros de jornada de Dnar, os Bracher (Décio, Celina, Carlos e Nívea), Renato Stehling, Roberto Gil, Heitor Alencar, Sílvio Aragão, Ruy Merheb, Roberto Vieira, Wandyr Ramos, Reydner, Américo Rodrigues e outros expoentes que, a partir do final dos anos 1950, vislumbraram um novo horizonte para a arte mineira. Já no primeiro contato com os pintores que freqüentavam a sociedade de Belas Artes Antônio Parreiras, Dnar percebeu que o local aglutinava pessoas ligadas à cultura de diversas áreas, pois estavam lá também Affonso Romano de Sant’Anna, Luiz Affonso de Queirós Pedreira Ferreira e Wanda Panisset, que se tornariam seus amigos.
A memória do desenhista e pintor foi reverenciada com o DVD “Dnar Rocha – pelos caminhos da arte”, com direção e roteiro de Éveli Xavier, e o livro “Dnar, o silêncio das imagens”, organizado por José Alberto Pinho Neves.
O DVD “Dnar Rocha – pelos caminhos da arte” foi produzido com recursos da Lei Murilo Mendes de Incentivo à Cultura. Já o livro “Dnar, o silêncio das imagens” traz textos de Walter Sebastião, Arlindo Daibert, Angelo Oswaldo de Araújo Santos, Walmir Ayala, Maraliz de Castro Vieira Christo, Edimilson de Almeida Pereira, Rachel Jardim, Amaury De Battisti, Aquiles Branco, Geraldo Edson de Andrade, entre outros, além do próprio José Alberto, e contou com o apoio da ArcelorMittal.
Juiz de Fora, algumas cidades da região montanhosa da Zona da Mata mineira e até alguns outros centros urbanos, como a orla da Região dos Lagos, serviram de motivação para sua pintura e seu desenho. Dnar soube extrair a essência de nossas montanhas, de nossas casas, de nossa gente, e ainda transitou com desenvoltura por outras paragens na busca de inspiração.
No retrato, o artista realizou algumas pinturas que revelam o avanço técnico alcançado além da sensibilidade e versatilidade artística à flor da pele. Por sua vez, Juiz de Fora e a Zona da Mata mineira tiveram na pintura e no desenho de Dnar expressões maiores do poder da arte quando exercido com paixão e completo domínio artístico. O olhar de Dnar tornou possível vislumbrar a alma da cidade, da região e de sua gente.
O traço de seu desenho, vigoroso e definitivo, demonstra o compromisso com o suporte de papel ao longo de toda sua trajetória de cinco décadas em Juiz de Fora. Já as pinceladas densas e precisas de sua pintura possibilitaram um mergulho na cidade de nossos sonhos. Uma utopia materializada em cores sobre tela. Uma simples casa branca em meio às cores de sua paisagem mineira simbolizava a busca do artista por uma identidade em sua pintura, por uma assinatura, uma marca registrada entre a luz e a sombra, que foram exploradas à exaustão em sua pintura.
Meticuloso em seu ofício de pintor e desenhista, Dnar antes de se debruçar sobre o papel ou a tela esquadrinhava cada canto do suporte escolhido e, ao criar, já pensara a obra por inteiro. Um dia, durante uma conversa entre amigos, deixou escapar: nunca partia para o ataque sem vislumbrar todo o panorama. No DVD em sua memória, durante uma entrevista Dnar apontou o caminho: “É como a Nívea Bracher disse uma vez: ‘Meu atelier é dentro da minha cabeça’. Na verdade, sofro tudo dentro da minha cabeça primeiro”. Para, em seguida, arrematar: “É, a pintura me dá medo”.
Na opinião do artista plástico César Brandão, “Dnar Rocha fez sua obra talvez inspirado na frase de Leonardo Da Vinci, ‘pintura é coisa mental’; pois, sua pintura é de extrema inteligência da cor, e nenhum campo cromático é posto ali de forma aleatória; mas, rigorosamente com base no raciocínio. Na feitura de sua obra não há lugar para o espontâneo, o ocasional, ou o gestual emotivo. São cores pensadas, estudadas para ocupar cada espaço da tela; e é necessário ao nosso olho um trabalho de prospecção minuciosa de cada detalhe de sua pintura. Ou seja, é preciso cavar com o olho para perceber a pluralidade de cores em cada canto de sua pintura; onde há uma construção arrojada, na fronteira da abstração. E isso me levou às vezes a dizer ao Dnar que eu gostaria muito de ver suas pinturas em grandes dimensões, em formatos gigantescos; talvez em torno de cinco por dez metros. Como isso, infelizmente, não ocorreu, resta a nós espectadores observarmos cada centímetro de sua pintura, e ali percebermos o gigantismo do pintor Dnar Rocha”.
Em texto para uma exposição, o saudoso Arlindo Daibert (1952 – 1993) afirmou: “sem dúvida alguma, Dnar é um dos mais importantes artistas de sua geração, mas poucos conhecem a importância de sua obra gráfica. Para um espectador atento, o desenho esteve sempre presente em sua obra”.
Em vida, foi um exemplo de generosidade e de simplicidade. Sem Dnar entre nós, fica o compromisso de reflexão com a construção da cidadania, uma de suas lutas. Sempre consciente dos desafios de seu tempo, da importância da consolidação democrática, do combate à injustiça social e da busca de expansão do conhecimento e da educação com qualidade para todos, o artista acreditou na capacidade criativa de nosso povo, uma vez estimulado e valorizado. Ao acreditar na transformação de homens e de mulheres pela educação e pela arte, Dnar revelava o quanto sua trajetória refletia uma concretização dessa vertente possível e ao alcance dos que buscam a realização de seus sonhos.
Como um artista empenhado na luta pela preservação da memória e do patrimônio histórico e artístico, marcou presença na mobilização pela transformação na antiga fábrica têxtil Bernardo Mascarenhas num centro cultural dinâmico, uma fábrica de arte e cultura, e esteve na linha de frente da campanha pela recuperação do Museu Mariano Procópio e pela criação da Associação Cultural de Apoio ao primeiro museu de Minas Gerais. Também emprestou seu prestígio na jornada em defesa da restauração do Cine-Theatro Central.
A educação do olhar, associada à percepção lírica do mundo, consiste num procedimento que Dnar articula intencionalmente, segundo o poeta e ensaísta Edimilson de Almeida Pereira: “Sua pintura poética é fruto, portanto, de uma ‘paixão medida’, para evocarmos Carlos Drummond de Andrade, que o lança à cena artística contemporânea. Por isso, os seus cortes geométricos ou seus ensaios com as garrafas, por exemplo, alimentam o diálogo com os modernos, tais como Picasso e Morandi, respectivamente. Diga-se bem, são diálogos aos quais Dnar comparece munido de sua oficina poética dotada de recursos específicos. Recursos desenvolvidos pelo indivíduo que se recusou a deixar as cercanias de sua casa mas que, por conta disso, compreendeu a necessidade de articular um pensamento aberto, sem fronteiras, que traz para o seu convívio todos os nomes e todas as paisagens”. Nesse sentido, assegura Edimilson, “Tabuleiro e Paris, Paraibuna e Tejo, um ensalmo de cura e um manifesto de arte moderna – enquanto motivadores da sensibilidade e da experiência estética – encontram acolhida propícia nas reflexões e na pintura de Dnar”.
Já o jornalista e crítico de arte Walter Sebastião, analisando o desenho de Dnar, garante: “Diante das obras do artista o embate se dá com a construção das imagens numa autêntica ‘dança do intelecto’ entre valores clássicos e não com a expressividade (no sentido de imersão em mundos subjetivos). Dnar Rocha, junto com o poeta Fernando Pessoa, defende o ‘tudo que em mim sente está pensando’. Trata-se de defender um modo específico de produção de conhecimento e singularidade da experiência artística, impedindo que ela se torne cenário para derramamentos sentimentais, ou pior, alguma coisa sem vida própria, incapaz de tensionar o mundo que tem à sua volta”.
Ficam a obra e a lembrança de um homem simples, mas capaz de seduzir nosso olhar pela complexidade de sua alma e de sua força inventiva.

Jorge Sanglard é Jornalista e pesquisador

Identificação das imagens acima:
1- Dnar e uma de suas obras
2-Fundo de atelier com árvore de acerola, óleo sobre tela, 2002, coleção Paulo Delgado / Mirian Delgado
3- Paisagem rural com casas em Juiz de Fora, óleo sobre tela, 1993, coleção Cesar Xavier Bastos
4-Museu Mariano Procópio, acrílica sobre papel, 1995, coleção Fundação Cave








 

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