27.12.10

Fernando Lona: um talento que cedo ficou pelo caminho na MPB, anunciando um tempo que não viveu para cantar




"Passa o rio pelas pedras/passam o barco, a correnteza/passa a vida sem sentido/pelo mundo da incerteza/passam os anos por janeiro/corre a sorte atrás da gente/passam um por dentro do outro/todos os elos da corrente/eu só corro do meu passo/para ver você passar/pra buscar no fim do mundo/a verdade de te amar/três, três passará/derradeiro ficará..."
    
 
      Prezados amigos,
 
      Com a brevidade da cantiga infantil da qual recolheu o mote para entoar os seus versos em "Três, Três" - ainda muito bem gravada pelo Quinteto Violado no elepê de 1973 do conjunto, "Berra Boi" -, assim passou Fernando Lona, baiano de Ubaitaba, no sul do estado, por este mundo dos vivos e dos "muito vivos" e pelo universo, nem sempre receptivo ao mérito, da canção popular. Tinha um show marcado para o dia 10 de novembro de 1977, "De Cordel a Bordel", no Teatro Paiol, em Curitiba, acompanhado do conterrâneo e parceiro Vidal França (filho do Venancio do clássico "O Último Pau de Arara") e do Bando de Macambira, mas, às 15h do sábado 5 de novembro daquele ano, a 3 km de Registro, no interior paulista, como detalha o pedagogo e pesquisador soteropolitano, residente em Itabuna, Luiz Américo Lisboa Jr., teve a marcha do seu automóvel  - e a da carreira na MPB - freada bruscamente pelo destino em violento acidente na BR-116. Ia ao encontro dos aplausos paranaenses, nos seus 40 anos de idade, marcados por presença multifária na arte, cantando, compondo, tocando violão, representando e escrevendo livro ("O Romance Desastroso de Josiano e Mariana"),  mas, sobretudo, imprimindo à sua criação nas peças e filmes que musicou, assim como no único elepê que gravou ("Cidadão do Mundo", pela Tapecar, poucos meses antes de a visita da "velha senhora" impor a ele, aqui na Terra, o seu derradeiro "ficará"), um lirismo engajado ("O rei só quer meu ouro/e depois a minha morte/não entende a minha dança/nem o fado das gaiolas,,,", em "Fado das Gaiolas"), em grande parte inspirado pelos percalços do sertanejo em seu meio de origem, até mesmo na migração por melhor sorte ("partiu Justino/ levou família/e retirou sem destino.../carne ficou no espinho/esperança ficou no caminho...", em "Lamento de Justino", feita juntamente com Orlando Sena) . Nesse veio de observação, afirma o supracitado Luiz Américo: "Fernando Lona é um artista que aliava, como poucos, a beleza dos versos e da harmonia às imagens fortes da sua época. Uma personalidade dotada de um sentimento nativista tão forte como um jequitibá, cristalino como as águas de um rio e penetrante como o pôr do sol." Embora espécime humano da "faunas urbanas" de Salvador, do Rio e de São Paulo, nele predominava, na motivação autoral, o apelo rural nordestino, de um chão seco de demandas e oportunidades. 
       Em meados de 1964, na inauguração do Teatro Vila Velha, em Salvador, Fernando participou de um show histórico e de sucesso, "Nós, Por Exemplo", como integrante de um grupo artisticamente substantivo e até mesmo renovador, no qual também se revelavam, nessa ocasião, apenas para o público de lá, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa (ainda Maria da Graça), Maria Bethânia, Alcyvando Luz, Tom Zé (ainda Antônio José, substituto de Fernando em uma segunda apresentação),  Perna Froes e Djalma Correa. Antes conhecido do cartaz cultural de Salvador por sua atuação no teatro como ator, na peça "A Exceção e a Regra", de Bertolt Brecht, Fernando, ainda no politicamente traumático 1964, iniciaria importante colaboração autoral no nosso cinema, levando a sua doce lira "gauche" às imagens de "Grito da Terra" (um libelo pela reforma agrária rodado na Bahia por Olney São Paulo, preso e torturado, cinco anos depois, como reflexo do AI-5, por causa do "subversivo" curta "Manhã Cinzenta" e também prematuramente falecido, em 1978, aos 41 anos) e, entre outros filmes, mais adiante, no Rio, em 1968, fazendo a trilha do proibidíssimo "Jardim de Guerra", de Neville D`Almeida (com roteiro deste e de Jorge Mautner), outro diretor osso duro de roer, então, para os militares aboletados no Planalto Central do país. Tempos árduos, de comunicação cifrada na imprensa e nas artes, tornando a música popular, pela obviedade da repressão, um "paraíso da metáfora", muito explorada pelo tutano dos compositores na chamada era dos festivais. E nela, em parceria com um paraibano formado em Direito, Geraldo Vandré, e bem ajudado pela interpretação da saudosa Tuca e do percussionista Airto Moreira, Fernando inscreveria a sua assinatura, ganhando, em 1966, o II  Festival de Música Popular da TV Excelsior, com uma bela marcha-rancho, "Porta-Estandarte": " Eu vou levando a minha vida enfim/cantando e canto sim/ e não cantava se não fosse assim/levando pra quem me ouvir/certezas e esperanças pra trocar/por dores e tristezas que bem sei/um dia ainda vão findar/um dia que vem vindo/e que eu vivo pra cantar/na avenida girando, estandarte na mão pra anunciar."  
       Um bom dia a todos. Muito grato pela atenção.
 
       Um abraço,
 
       Gerdal
 
Pós-escrito: 1) nas fotos acima, reprodução de cartazes do longas lembrados: "Grito da Terra" e "Jardim de Guerra";
                      2) nos "links" abaixo, 1) Marília Medalha e Edu Lobo, em 1978, no "Fantástico", da TV Globo, cantando "Porta-Estandarte"; 2) a marcha-rancho por um de seus criadores, Geraldo Vandré; 3) "Cidadão do Mundo" (foto de capa de elepê, acima), de Fernando Lona, pelo próprio; 4) "A Lua Girou", de Fernando Lona e Júlio Ricardo, mais uma na voz da niteroiense Marília Medalha.        
                   
        http://www.youtube.com/watch?v=E95Ce4ZsNe4 ("Porta-Estandarte")
 
        http://www.youtube.com/watch?v=hmyFak8JBpo&feature=related ("Porta-Estandarte")
 
        http://il.youtube.com/watch?v=vcNOS3a4v54 ("Cidadão do Mundo")
 
        http://www.youtube.com/watch?v=zmrXl7zgQJ4 ("A Lua Girou")

Nenhum comentário: