23.7.10

A loja que virou suco


Antes de mais nada, quero me desculpar, pois ando com pouco tempo para escrever uma croniqueta e o que vai aqui nestas mal digitadas linhas é só um lamento breve.
Nesses tempos de grande avanço tecnológico, tenho certeza de que certos ganhos implicam em perdas irreparáveis, a maioria delas, afetivas.
O processamento digital das imagens tornou obsoletas as lojinhas de revelação de fotos, assim como a digitalização do som está liquidando as pequenas lojas de CDs.
Foi isso que aconteceu aqui no meu bairro. Bem que eu vi que a loja onde revelei fotos de minha família, nos últimos 30 anos, estava em obras. Distraído como sou naturalmente, pensei com meus botões que o pessoal, enfim, tinha resolvido fazer uma reforma: quem sabe uma nova pintura, novos armários, um balcão bacana... nem prestei atenção no que estava escrito numa placa pregada na frente da loja em obras. Só fui saber que ela tinha sido vendida, quando entrei num ônibus, num fim de tarde. Atravessei a roleta e lá do meio do veículo, ouvi a conversa de um passageiro com o motorista. Eles falavam sobre uma loja e uma moça que atendia ao balcão. O O passageiro disse emendando uma conversa que começara e que eu tinha perdido o fio.
- Pois é, vai virar uma lanchonete.
- Me disseram que vai ser um negócio que está na moda, é verdade? Perguntou o motorista.
- É isso mesmo, vai ser uma novidade no bairro. Já tem em Ipanema, no Leblon.Vai ser muito bom no verão, muito suco de fruta gelado com leite, acho que é um novo tipo de sorvete, vai ser um sucesso no calorão que vem aí!
- E a moça, o que aconteceu com ela, perdeu o emprego?
- A moça foi para casa , acho que arrumou outro trabalho...
-É, ela era gente boa, sangue bão!
...Aí o barulho do motor tornou o resto da conversa picada e em certos momentos inaudível. Ainda demorei alguns minutos para conseguir ligar as coisas: a imagem da loja toda escondida sob os tapumes, a placa que não li, a moça simpática, sempre com um sorriso nos lábios, que eu sabia que tinha um filho e cujo nome minha mulher conhecia, e o novo negócio de sucos que vai estourar na praça. Será que a moça arrumou emprego mesmo?
Confesso que fiquei muito triste, com o fim dessa loja, pois ela tinha um signficado especial para mim, era parte dos meus afetos. Senti, como se tivessem arrancado alguma coisa minha. Faz pouco tempo, eu tinha mandado revelar os filmes do casamento de meus filhos. Foi o mesmo lugar que me presenteou com as primeiras fotografias deles e que eu esperava, iria testemunhar o nascimento de meus netos.
O que vai acontecer daqui para a frente, a gente já sabe: Será inaugurado o novo negócio de sucos - vai atrair uma freguesia feliz e refrescada, e segundo o passageiro daquele ônibus, - vai ser o grande sucesso do verão que se aproxima. Em pouco tempo ninguém mais vai lembrar daquela loja de fotos que mostrava em sua vitrine as máquinas digitais que anunciavam sua liquidação. Ninguém vai mais lembrar do toldo que cobria sua entrada, do luminoso que anunciava seu nome . A loja estava tanto tempo ali, que parecia que fazia parte da paisagem, quase como algo natural. Seu desaparecimento parece uma espécie de aviso, uma metáfora cruel- o lugar que revelava as memórias fotográficas, as imagens das pessoas vai para o liquidificador da pós-modernidade.
Dessa maneira, o bairro se transforma , ganha uma cara nova e perde suas características, liquefazendo significados... Nada contra a loja de sucos, que seja bem vinda, mas sem a gente perceber, um pouco do nosso ser também se dilui nesse movimento renovador.

2 comentários:

TS disse...

Grande!
Tinha uma estória vivida pra te contar, tem a ver c/ esse pequeno aspecto da 'mudernidade' que nos atropela day by day, mas não tenho tempo, depois conto... às vzs acho q envelheci "antes" do tempo só por conta do lixo tecno que se acumula em minhas gavetas e lembranças e a digitalização de quase tudo, até do vaso sanitário! até hoje não me entendi c/ um smartphone, 'cridita?
abrs.

LIBERATI disse...

Querida Tinê, nem sei o que é smarphone, é um telefone esperto?
Só me incomodo com a tecnologia quando ela liquida coisas e torna as coisas irreversíveis. Mas tem gente retonando ao vinil, que possui uma qualidade de som que o CD não consegue, tem gente retornando à tela, vendo nela algo de valor e deixando de repetir nas instalações o velho achado de museu do urinol dadaísta e vejo outros revivals positivos que não invalidam os achados da tecnologia - a arte ganha muito com os computadores, mas não deve matar a mão que balança o berço.
bjs