23.4.10

Crônica da Tinê: Terra em trânsito


Entre cismas e sismos, eu disse que o problema era mais embaixo, ele disse que era mais acima. Falei da ação predatória humana, ele rebateu que estava fora da alçada do homem. Pausamos para mais uma garfada no frango com quiabo, batata doce e amendoim. Papo contínuo... O ano começou com um megachacoalho no Caribe, depois no Chile, outro no México, mais um na China, outros menores (mas não menos desastrosos) no golfo pérsico, tremores até em terras nordestinas e sulistas do Brasil. Calores anormais. Meu cacto floriu fora de época. Já tinha um termômetro, comprei um barômetro, o vizinho tem um hidrômetro, agora, acho, vou adquirir uma engenhoca com escala Richter, nunca se sabe o porvir. Aqui e acolá, secas prolongadas, degelos de áreas milenares, enxurradas, transbordos, erosões acima e abaixo do chão. Morte aos milhares. Nuvens de cinza vulcânica paralisaram parte do tráfego aéreo europeu por quase uma semana, às vésperas de comemorar o Dia Mundial da Terra, e os homens só reclamaram dos prejuízos financeiros. Após décadas de secura, este ano choveu cântaros no deserto egípcio. Literalmente, nosso planeta está em cólicas! - de tanto invadirem suas entranhas, ele treme, tosse e vomita. O magma sobe em gigantesca náusea. De tão esburacado, drenado em suas riquezas em prol do progresso humano, o planeta acomoda seus ‘vazios’, tais como caminhos de vermes mortos, com massa ígnea. Geólogos acorrem em explicações minuciosas ilustradas por sofisticados sofwares para que os leigos entendam, tintim por tintim. Ainda avisam que os Alpes estão a afundar, é provável que o mesmo ocorra ao Himalaia e os tibetanos nem percebem: a Terra é silenciosa, evita explosões de raiva até não mais aguentar e ruge a valer. Um dia, Veneza será indicada pelo cimo da catedral como uma boia sinaleira em meio às águas mediterrâneas. Os ambientalistas fazem piquetes em terra, água e ar. Os tecnocratas desdenham. As crianças abraçam árvores em ciranda. As velhas caem de joelhos a rezar: ainda picham o nosso Cristo Redentor carioca! Os utopistas anunciam o fim do governo, da indústria e do comércio gananciosos. Os prejudicados praguejam, apontam dedos à roubalheira. No balanço das ondas, iremos todos a funda, pois sim! Os esotéricos deixaram de lado as cordas navajas, o apocalipse de João e as profecias de Nostradamus para se debruçarem sobre o Livro dos Maias – o fim será em 2012!
Juscelino fundou Brasília há cinquenta anos no planalto central (só podia ser coisa de mineiro precavido), assentou a capital federal em terras ‘zimilenares’ (sobre placas bem sedimentadas) e, o que é importante, longe de ventanias e possíveis tsunamis costeiros. Praias, só as ribeiras (só podia ser coisa de mineiro que não tem mar).
Meu companheiro de almoço, sentado à minha frente, disse-me com ar professoral e mineirês: “É uma questão de ângulo. O eixo da Terra teve uma inclinação mais acentuada, um fenômeno geodésico, o homem nada pode alterar.”
Repliquei com minha relativa ignorância que, quando o Ártico e a Antártica se alinharem à linha do Equador, espero que eu e os meus já tenhamos renascido em alguma aldeola de Andrômeda! Diante da goiabada e do queijo posicionados como astros siderais, comi a sobremesa como se fosse a última.
Para mim, a Groenlândia não passa de uma geleira, mas foi a Terra Verde dos vikings, ou seja, a Greenland teve outrora prados verdejantes como o Saara de hoje já teve suas baleias e ostras. Da Islândia pouco sei, olho pouco na direção de países congelados, só sei que lá nasceu a cantora Björk e a capital é Reykjavik... será que os islandeses, um dia, cultivarão uvas? Por agora, tento pronunciar o nome do vulcão ativo por lá, autor dos últimos rebuliços europeus, o EYJAFJALLAJÖEKULL, palavrão que significa “Glacial da Montanha da Ilha”, e mandar recado ao São Jorge, santo guerreiro homenageado hoje, de que o dragão é imensurável: o planeta precisa de homens melhores. Evoé. Amém.
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Tinê Soares – 23/abril/2010

9 comentários:

Maysa disse...

Tinê

Parabéns pela crõnica! Presente que a gente, ao visitar o Liberati, recebe e tb agradece.

Bem saborosa a maneira de contar os fatos- em si - altamente nefastos e indigestos.
Abcs

Maysa

TS disse...

Obrigada, cara Maysa, é um prazer dar uma escapada e deixar por cá umas palavras no espaço do Liberati.
Mesmo com as limitações técnicas em meu lugarejo, eu não podia deixar passar em branco as últs efemérides.
:)
Abrs.
Tinê

sara disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
sara disse...

Adorei a imagem da cólica.
Pra mim, a erupção do vulcão serviu pra mostrar quem é que manda!
bjão

ze disse...

As Nornas, velhas senhoras moram debaixo da ponte de arco-íris em Mid-gard, cidade do meio - a cidade de cima é a Ut-gard, se não me engano, e há também a cidade de fora. Elas conversam com Odin (caolho), Loki (chose de Loki, coisas de Loki), Thorr o do martelo, Freya, mulher que dá nome à sexta feira e que carregava um fruto que todos queriam e outros / as. É tudo na Islândia. A Edda de Sturluson, Snorri, é lá escrita e lá cantada.

TS disse...

Sarinha e ZE, obrigada por seus comentas.

Aproveito pra deixar uma correção:
onde se lê "hidrômetro", leia-se "pluviômetro", que mede a precipitação de chuva.
(hidrômetro, todo mundo tem!)

Faltou o "t" em software...

Abrs, Tinê

Ed disse...

Perfeito, Tinê. Como sempre. V. tem uma capacidade narrativa incrível e todas as suas pontuações, ainda que ditas em outros locais e de outras formas, ganham uma acentuação inédita em seu texto. Agora, eu ando brincando ultimamente com isso: que acho que o mundo vai acabar em 2012 mesmo. Bom... de mil passou e de dois mil tb. Será 12 o nº místico (o enforcado do tarô?) Esquece. Eu ainda desejo aposentar. Nem que seja para aproveitar o último dia (que lástima e pesimismo... mas neste contexto, não consigo pensar em algo mais "esperançoso", ainda que ela - a esperança - persista!) Bjão.

Lygia Nery disse...

Minha querida Tinê,

Não bastassem os estertores telúricos e as nuvens de fúria do vulcão de nome impronunciável, cá estamos nós, da veneranda espécie humana, nos superando no papel lamentável que representamos no mundo.
Nesse momento, um rio de petróleo nascido no fundo do golfo do México se alastra tal qual minha vergonha de fazer parte dessa espécie.
Enquanto isso, os meus vizinhos trocam os jardins por garagens e derrubam árvores sob o pretexto de que as folhas caem e fazem sujeira na calçada. Logo, logo vão reclamar que nunca fez tanto calor e eleger o ar condicionado como solução.
Salve a sabedoria!

Um beijo!

José Mauro disse...

a natureza vai aos poucos cobrando com os juros devidos, o desprezo do homem, dono do mundo. Tinê você é um caso sério! Parabéns