11.7.09

A maldição de Wim Wenders


(Esta crônica, conto, não sei bem o que é, só pode ser lida por quem ama ou odeia o cineasta alemão acima citado)


Maldito Wim Wenders ! Ele resmungava e socava a mesa de bar, cheia de garrafas de cerveja vazias que tremiam e faziam um ruído irritante.
- Ô Zaca, desce mais uma !
E lá vinha o dono do estabelecimento com uma Antártica geladinha, casco escuro, senão ele mandava de volta, dizia que era mijo invertido...
- Pois é, eu imaginei que tudo tinha começado com aquele filme... (Ele falava para um ouvinte invisível , talvez aquele da literatura, pois o Zaca nem estava aí para o que ele estava falando, de olho fixo na TV , admirava uma mulata rebolativa que fazia o coro de um cantor de pagode da moda)
- Sempre achei que o veneno estava ali. Que foi com ele que matei aos poucos nosso casamento. Também, tinha que botar ela pra assistir três vezes "O medo do goleiro diante do pênalti"?
É preciso ser macho para aturar aquilo, e não foi só isso: inventei de levar ela pra ver "O Estado das Coisas" que estava passando numa sessão da meia noite do Cinema 1, coitada ...Aquilo deve ter sido dose, mas não foi gota d'água, ainda não foi esse filme o que terminou com as coisas entre nós.
O rapaz estava de fato muito bêbado e parece que indeciso se botava ou não a culpa no cineasta pelo fracasso do seu casamento.
- Deve ser porque um dia eu falei pra ela que essa história de sujeito não existe. O sujeito da relação sujeito, objeto, entende? Falei mais, disse que a gente é uma indeterminação, um fluxo de vários discursos. Mandei na cara dela um papo de que somos produtos da linguagem. Que o autor morreu...E aí, Zaca, tá entendendo alguma coisa desse papo?
- Tudo, meu amigo, tô entendendo tudo.
-Não, você não está entendendo porra nenhuma, Zaca. Não vou ficar aqui citando autores. Basta dizer que é tudo francês e lembra "Quantrô", que se escreve C-o-i-n-t-r-e-a-u, sacou? Falando nisso, desce um "Quantrô" aí, Zaca !
-Esse daí não tem não. Falou o homem, passando em revista as bebidas atrás do balcão.
- Então manda um Steinhaeger mesmo, que eu vou de submarino!
Zaca disse que esse também não tinha.
Então manda um "Fogo Paulista " , que desta vez eu me acabo.
Zaca botou a bebida num copinho e o rapaz tomou num só gole. Em seguida arrematou com cerveja. Uma mistura explosiva, sem dúvida, mas que dava para avaliar o desespero do cara. Ele nem fez cara feia quando aquela química dos diabos invadiu seu estômago, continuou seu discurso encharcado.
-"Paris, Texas" ela até que achou legal. Caramba, tinha o roteiro do Sam Shepard , a trilha era do Ry Cooder em cima do "Dark Was the Night" do Blind Willie Johnson, aquela guitarra riffando bacana com as cordas soltas sob o dedo, presas num anel de aço como fazem os bluseiros. E tinha aquela coisinha maravilhosa que é Nastassja Kinskie. Ah, e para variar tinha o Wilson Grey deles, o tal de Harry Dean Stanton. O bicho estava em todos os filmes "cults" que fizeram naquela época....Porra, acho foram esses filmes que acabaram com tudo... maneira de dizer, mas no fundo creio que fui eu que devo ter virado um ser estranho naquela casa. Mas ela gostou de "Paris, Texas", Zaca! Também pudera, Paris, Texas é um puta filme! E não é um filme cabeça...deve ser isso...acho que ela não curtia filme cabeça, Zaca!
Mas tinha a questão teórica, e eu era uma besta. Nem percebi que ela me olhava perplexa, enquando eu desconstruia as coisas que ela dizia, e me metia a falar de simulacros e simulações. Me lembro de um dia em que eu comentava que a realidade era uma ficção e ela estava falando alguma coisa sobre o supermercado. Aí eu acho que empombei e disse que esse sim era um grande exemplo do da sociedade se rendendo ao consumo , o supermercado como o templo do consumo. Puta clichê, Zaca! Como eu me afundei nessa... Olhe que nem falei dos shoppings, falei do grande fator diluidor que reside no núcleo dos supermercados - alcachofras ao lado de pasta dental e camisinhas. Produtos iguais na desigualdade, gôndolas, caixas registradoras, seguranças, uma prisão de prazer, uma prisão do consumo. E as meninas diante das caixas registradoras, todas naqueles uniformes de colégio interno...No fundo mais uma prisão. Ah! meu Deus, ela só queria que eu comprasse umas fraldas descartáveis e um pote de Hellmann's! E eu cheio de conceitos.
Mas aí veio "Asas do Desejo" , depois "O Céu de Lisboa" , e teve também "Até o fim do mundo"....
Cacete, eu devia ter levado ela pra ver filmes da Meg Ryan!
Quando entrei numa de explicar o pós-moderno, ela aguentou firme . Só chiou um pouco quando eu disse que era o fim das grandes narrativas. Mas acho que o bicho pegou mesmo quando apareci com o vídeo "O fim da violência" para a gente assistir depois do Fantástico. Ela , eu creio, dormiu durante o filme. De qualquer forma, não entendeu o final e ficou me olhando com uma cara de bunda. Eu tentei explicar, e quanto mais eu explicava, mais ela se irritava, o caçula começou a chorar lá no quarto, eu acendi um cigarro, na chama do fogão que esquentava a mamadeira, ela mandou eu apagar, eu mandei ela para aquele lugar e acho que aí foi o fim. Cacete, e eu nem percebi... Muito tempo depois a gente resolveu dar um tempo. Sabe como é, desgaste da relação, coisas de casal...Em uma semana as coisas estariam consertadas. Passaram 3 anos...
Ontem, por acaso encontrei com ela no Estação Botafogo, tava com seu novo marido na fila de "Cada Um Com Seu Cinema" que é uma coletânea de 34 curtas de vários diretores. Cada um deles filmou 3 minutos- coisa muito avançada.Mas ela fez questão de me dizer que veio mesmo para ver a parte feita pelo Wim Wenders, os 3 minutos de "War in Peace". Foi aí que eu pirei, "mermão"!
Zaca disse que não era bem assim, que certas coisas não se explicam. Sem que o rapaz pedisse ele abriu mais uma cerveja e desta vez botou um copo pra ele também. Como era o nome do cara mesmo?
- Que cara, Zaca?
- O que acabou com seu casamento?
- Tavinho, eu mesmo, seu criado...
E assim trincaram os copos num brinde melancólico.
Corta!

4 comentários:

ze disse...

'tá bom de ler e tb 'tá instrutivo. a moda não é só de roupas : moda de livros, de teorias,... moda de tudo. felicidades.

LIBERATI disse...

Caro Ze, que bom que você gostou, pois é essa moda teorética e cinematrográfica do personagem da crônica (nem sei se é conto) acabou com o casamento dele, mas o pior que a mulher se vingou aderindo a ela depois de tudo terminado. Seres humanos são complexos. Acho que todo dia esse rapaz bate o ponto no bar do Zaca e fica tomando cerveja que de vez em quando mistura com Fogo Paulista, argh! E continua resmungando. Pobre do Win Wenders, deve estar com a orelha roxa. Mas podia ser o Herzog ou o Fassbinder. Cinema alemão não é mole!
grande abraço

ze disse...

o Herzog, inesquecível é 'O enigma de Kaspar Hauser' - e pensar que é tudo verdade, o sujeito existiu e o filme é um documentário!!
'Raízes e frutos', abandonar a cidade e viver no mato, caracteriza o Oriente. Òcidente mostra-se urbano demais, vide os fatos : ho-je no Br., 80% das pessoas vive em cima de paralelepídedos e asfalto. 'Raízes e frutos' é a terceira via, a via Oriental. Os casamentos não acabam eles vão se somando. quem casa casa para sempre (mesmo que separe). felicidades.

LIBERATI disse...

Kaspar Hauser é um belo filme. Gosto de Aguirre, a cólera dos Deuses também. Mas cinema alemão é barra pesada. Se oriente rapaz, já dizia o grande Gilberto Gil.
grande abraço