18.9.08

Crônica da Tinê - ...madalenas sem canela, por favor.


Num gesto rápido alguém puxa as cortinas vermelhas. O som estridente das roldanas no trilho ricocheteia entre paredes, resíduos metálicos se calam nas fibras da fronha. Uma porção da neblina invade o quarto. O vento estremece um pé nu fora da cama, os dedos se encolhem. Cravinas secas se balançam sobre a cômoda. De bruços, deu para ver com um só olho pelo espelho, o outro está em pestanas cerradas sob o travesseiro.

A escada embaixo está molhada. - em sussurro - Mandioca cozida com café ou mingau de fubá? Os cactos espalmados estão empinados, um floriu, choveu antes do amanhecer, cuidado ao descer. Em resposta, baixinho – Quero chá, cidreira com jasmim, e se não for pedir muito...

No verão as tábuas estalam. No inverno, roçam umas nas outras feito cetins. Se chover, emudecem. Os adultos antigos explicavam às antigas crianças o barulho do piso: eram passos de fantasmas - em época quente eles dançavam o chicotinho; quando esfriava, dançavam o miudinho.

Na estiagem é visível o pó sobre os livros. No frio, vapor nas vidraças. E se chove, dezenas de pequenos rios descem pelos vidros, mofos crescem dentro dos armários. Se cair granizo no vidro fino, milimétricas rachas se ramificam como a árvore da vida.

Barriga para cima, olhos semiabertos na direção das mãos que dobram as roupas espalhadas e as colocam com cuidado sobre o encosto da cadeira onde ninguém pode sentar. A peça de madeira e sisal foi comprada só porque é igual a pintada por Van Gogh, com cachimbo de pau-rosa sobre o assento. Capricho decorativo em tributo.

Ruído abafado. Quando a primavera se aproxima os cupins entram em frenesi. De que lhes servirão as letras? A tinta é proteína? Por que não comem a numeração da página - tem que ser a palavra-chave, a boca feita a bico de pena, a frase do arremate, o rodapé das referências, o autor da citação com nome difícil de lembrar? A atividade voraz dos vermes lembra que está na hora de limpar as obras favoritas. Avinagrar as prateleiras, pulverizar essência de eucalipto. Só de pensar nisso, boceja.

A perna direita empurra a coberta. Com a esquerda esticada, outra folha da porta é aberta. Cheiro de barro úmido. Seivas de barba-de-bode e cabelo-de-bruxa fazem arcos no ar. O nariz se regala. Cotovelos apoiados, o corpo desliza para cima até encostar-se ao espaldar da cama para ver em perspectiva a porteira da fazendinha com suas paineiras: daqui até lá, em trilha reta; delá ao infinito, em curvas a caminho de... Para ver isto seria preciso deslocar o quarto para o meio da rua. Em pés descalços chega-se à balaustrada para não perder nenhum detalhe da vista. Então a imaginação gira o quarto em noventa graus e a memória completa a paisagem até chegar às amoreiras do lago.

Do balcão do quarto - da cama ainda morna, das flores murchas, das roupas dobradas, da cadeira do cachimbo, dos tacos cantantes, dos livros roídos -, a casa da fazendinha no horizonte surge aos poucos em meio ao nevoeiro que se desfaz.

Os pés giram no chão agora seco e os olhos acordados refazem o caminho inverso: fragmentos de escrita, canções esquecidas, cachimbo perdido, cadeira inútil, restos florais, lençóis vazios, dobras no tempo até chegar ao fundo do corredor refletido na penteadeira quando, aos tiquetaques, descubro que lá da parede ele me espiava todo esse tempo: de bigodinho engomado e olhar triste, o retrato do escritor.

Tinê Soares - 15/9/2008

7 comentários:

ze disse...

é. 'tá emocionante. estante avinagrada, é bom. 'guardais tesouros no céu onde as traças não roem e ...' . a madeira tem vida. vc está longe da alvenaria metropolitana. hoje descobri que até o séc VIII, Cantuária nas terras dos Anglos tinha metropolita - um padre de fora. vc está na vida da madeira. ouve ela falar pelo retrato. bjj.

Anônimo disse...

Pois é amiga... visualizei direitinho este momento...ai como um frio no pé desnudo dói... e como tinha medo deste fantasmas lá na casa de vovó... e ainda bem na madrugada... o canavial, que de dia era puro deleite... a noite assoviava ardido...e vovó dizia, já cansada, de tanta folia, são os fantasmas indo embora...se não dormirem eles voltam... pronto estava decretado o silêncio... e todos dormiam... era assim todas as férias... reunião de todos os netos...sempre viajo com suas crônicas sabia? Beijos, feliz finde para você também... e não deixe de comparecer ao abraço virtual às árvores... até lá...

sara disse...

O barulho das tábuas me fez lembrar a casa da minha avó em Pelotas.
Deu vontade de pegar a câmera e clicar esse lugar!
Lá tem broa de milho quentinha com manteiga derretendo dentro????
:-)
lindo texto.bj!

Anônimo disse...

o texto que Proust não escreveu, "La chambre de Mlle. T"?

Está delicioso como pão de queijo, melhor que 'madeleines'.
M.R.L.

Anônimo disse...

Está delicioso mesmo como disse MRL. E aliás, realmente nos remete à lembranças que estavam aqui, guardas sob alguns daqueles pisos de madeira da casa de nossas avós, tias... e o cheiro, de repente, veio. Beijos.

Lygia Nery disse...

Esse universo de memórias me soa inatingível como sonho do qual não se consegue lembrar no instante mesmo em que se desperta. Me sugere outra forma de tempo e espaço, onde as casas jamais dariam lugar aos edifícios.

TS disse...

Ao Liberati e a todos os que aki comentaram, meu mto obrigada.
Bjj.
(desculpem-me responder tardiam/t e no coletivo, pois meu computa deu blackout, estou usando um Cyber)