29.8.08

Crônica da Tinê - Sol de Quase Meio-Dia


O Ruivo de Beagá publicou "A Louca de Aracaju" que reclamava do carro que nunca teve. Zuretas diferem de nós porque vivem fora dos nós comuns. É fácil perder a cabeça, virar as barbatanas, perder-se em males de amor ou em crises de humor, sair dos eixos com os pés acima dos seixos. Qualquer um pode ter o seu momento tantã. Maluquices inofensivas viram moda. Como a mulher que foi ao casamento toda chique em preto e branco, calçava um sapato preto e o outro, branco.

"Olha o sapo!" As moças pularam de susto. Eu só via um mar de cabeças. Nenhuma coaxava. Riam. Ouvi sobre os matusquelas que perambulam pelas Minas. Alguns famosos, como a louca de Ouro Preto em seus trapos coloridos. "Cuidado, atrás de sapo vem cobra!" A vendedora enfia os dedos nas guelras, avisa que a cabeça dará bom pirão. O piramutaba sobre a bancada tem olhos vidrados nas bundas femininas. Eu ri: peixe morto leva para o céu bela imagem antes de pirar na panela.
Dizem que o miolo mole veio dos portugueses despachados para a colônia, misturados à endogamia somada a cachaça e doenças várias. Achava exagero de quem gosta de fiar caso para juntar gente em torno de malucos e peixes. Nunca soube de alguém ter nascido com rabo por ter pais primos de primeiro grau. Ou serão girinos nos neurônios? Para mim, era café com açúcar tomado em demasia pelas crianças que viravam adultos fermentados em pinga de Salinas até se embolarem e rirem ou se matarem como celerados. "Olha a faca!" Da lâmina só lembro do brilho que cortou a mão - mas isso foi antes do agora, hoje olho a cicatriz na palma enquanto relembro o pai a contar dos que padecem da bilha.

Quando cheguei às terras barrentas descobri na insanidade uma meia-verdade, mais que um simples gene tresloucado. "Olha por onde anda, dona!" Senti o corpo nos ares. Tropecei numa saca de rapacuia e só não fui de cara nas papaias porque no momento exato uma mulher empacou o carrinho e me serviu de anteparo. O barraqueiro esbravejava "É cega?!" Pipoquei. Com dor nos pés torcidos, vi peixes a nadar nas nuvens. Desanuviada a tempo, carreguei nos xis do meu sotaque e rebati "Por que não põe as sacas nos seus fundos? Se quiser ficar nas vistas, então faça um cartaz, ora. Cego é você!" Controlei a raiva. Eu não sou biruta de cair em cismas ciganas. Basta o caminho atravancado por galinhas que esticam as cabeças das gaiolas para ciscar grãos caídos das sacas. Então vejo um facão afiado a passar rente pela grade e vupt!, cabeças chutadas a esmo... Larga de besteira, mulher. Sacudi a cabeça e segui em frente.

Meninos pedem para levar minhas sacolas. Mulheres pedem para ler minhas mãos. Anéis de pedra de vidro em cor diferente para cada dedo. Tabuleiros de pimenta: malagueta, menina e dedinhos. Mordi uma. Na moenda de Seu Gabriel tomei caldo de cana e retirei o gelo para os tornozelos. "Quem pragueja contra cigano precisa ficar em copas." Uma mulher em túnica grega reclina e despeja devagar um cântaro de água na terra de onde afloram cabeças de peixes sedentos - divago, do coração aos pés.

Zás! "Sapo pega mosquito com a língua em chicote!" Tapetes de fuxico estendidos na calçada são Adelaides, Zildinhas e Suelis de línguas dadas em rede fraternal. Aqui, uma bacia em que Inês soca a massa do biscoito de polvilho. Adiante, João expõe seus premiados inhames. Olho para o contorno branco do relógio de pulso que deixei de usar. Para quê? Quando criança, eu desenhava relógios sem ponteiros.
Dondoido se aproxima. Ele vem da estrada que recebeu nome de avenida mas continua estrada. Ligeiro, cabeça erguida, peito nu, ele traz a camisa embolada num ombro e um sorriso bobo na cara. De gênio e de louco, todos temos um pouco. Ou oco. O oco é vácuo. No vácuo as esquisitices são imponderáveis. Os que seguem tudo à risca, não entendem e julgam "É doido!" - depois tomam banho, rezam, jantam e morrem.
Em loja com espelho, Dondoido alucina. Ele entra e vai direto se postar diante do próprio reflexo para ajeitar os cachos louros, põe-se de lado para ver atrás, sussurra palavras, repete os movimentos. Ele conversa com sua imagem em cumplicidade. Não sei se as vozes que ele ouve são pensamentos recuperados apenas por instantes ou ecos do outro lado que ninguém conhece. Quem sabe, também eu tenha ficado presa num relógio sem ponteiros cujo desvario secreto é pensar nas moscas como ideias que sobrevoam cabeças na esperança de que apenas uma possa me levar de volta no tempo? No espelho das semelhanças, vejo uma rã condenada à solidão dos brejos. Sem maluco-beleza. Beijo-quebranto, nem de sapo cururu.

Tinê Soares - 21/8/2008

6 comentários:

Lygia Nery disse...

Há um fascínio em tudo o que escapa à normalidade. Talvez porque nos livre do cotidiano previsível, onde o tempo tudo comanda, cria e destrói.
Há alguns anos , no vernissage de um artista plástico cujo trabalho junto aos internos de um hospital psiquiátrico resultou naquela exposição, conversei com um deles. Chamava-se João Jordão. Contou-me com naturalidade que havia devorado o sol.
Verdade ou não, não importa! Havia mais poesia em qualquer frase dele do que em toda a pós-modernidade!
Vou ler sempre suas coisas. Gosto do seu estilo.
Beijo.

TS disse...

Cara Lygia,

Concordo contigo; tbm vi há mtos anos atrás uma expo do Museu do Inconsciente, lá no Paço do Rio de Janeiro, onde pude conversar c/ algs dos "expositores": foi uma experiência enriquecedora, mas tbm dolorosa. Ou vc "come" o sol, ou é devorado por ele.

Neste txt peguei um aspecto do "mundo fechado" em uma pequena cidade; as pessoas se "protegem" seguindo as regras, a rotina "alimenta" mais que os produtos de uma feira-livre, independente de haver ou não um caso patológico no meio.
Obrigada, bjj,
Tinê

TS disse...

Em tempo:
"Ruivo de Beagá" é o apelido carinhoso que dei ao Edmundo Colen, do "Curtas Histórias" e "Cartazes de Cinema".

ze disse...

vc usou uma linguagem meio doida : há que se reler para entender. o limite da razão.

Anônimo disse...

Pois é amiga, hoje em pleno sol de inverno, mas inverno quase primavera... tiro o chapéu para mais uma de suas crônicas... e o que dizer mais... apenas que hoje é aniversário do Ruivo de beajá... então que muito sóis ainda aqueçam a todos neste inverno...e que tudo mais... seja só festa para Ed...Beijos TS... vamos comemorar?

Anônimo disse...

Esta foi excepcional. Comecei rindo, continuei franzindo a testa para entender esta diversidade cultural (linguistica) que v. conseguiu colocar com uma perspicácia e com uma leveza incríveis. E quer saber? Ainda estou rindo, mas acho que é de mim mesmo, (ou de v?), por ter me dado o "Ruivo de BH". ADOREI!!! :) beijaço.