22.7.08

Macunaíma - 80 anos de ai que preguiça!


(Este blogue começa a partir de hoje a publicar matéria apurada por Jorge Sanglard(*) - o texto foi publicado originalmente no Jornal O Primeiro de Janeiro “das Artes das Letras”Porto – Portugal em 21/07/2008 - vamos fazer como Jack o Extirpador e publicá-la por partes para não ficar muito longa para ler na telinha)
80 anos de Macunaíma
Reflexões sobre a rapsódia de Mário de Andrade

Em julho de 2008, a obra-prima modernista de Mário de Andrade (09/10/1893 – 25/02/1945) “Macunaíma” completa 80 anos e o Brasil celebra os 115 do nascimento do escritor. Os 800 exemplares da primeira edição e suas 288 páginas marcaram a literatura brasileira de forma definitiva. Apesar da frase “Ai, que preguiça!” simbolizar o estado de espírito do “herói sem nenhum caráter”, o certo é que nestes 80 anos de presença na vida cultural brasileira “Macunaíma” permanece desafiando o tempo e provocando reações as mais diversas. Amado por uns e questionado por outros, o livro é uma autêntica imersão nas coisas do Brasil e, sem dúvida, é um dos marcos da língua portuguesa no século XX.

Até o Carnaval do Rio de Janeiro abriu alas para o personagem de Mário de Andrade, em 1975, quando a Escola de Samba Portela cantou na avenida o samba-de-enredo “Macunaíma”, de David Corrêa e Norival Reis: “Vou me embora, vou me embora / eu aqui volto mais não / vou morar no infinito / vou virar constelação / Portela apresenta, do folclore tradições, / milagres do sertão a mata virgem / assombrada com mil tentações / Macunaíma, índio branco catimbeiro, / negro sonso, feiticeiro, / mata a cobra e dá um nó...”.

Para marcar o cinqüentenário da obra de Mário de Andrade, em 1978, Telê Porto Ancona Lopez lançou uma edição crítica de “Macunaíma” (LTC) apresentando o texto da rapsódia ilustrado por oito guaches de Pedro Nava (05/07/1903 – 13/05/1984), feitos em 1929, e buscando desvendar o processo literário do escritor, além de refletir sobre as múltiplas leituras que o livro suscitou. Esta edição comemorativa também trazia outras ilustrações realizadas em épocas diferentes: um desenho a nanquim e lápis de cor de Cícero Dias, um desenho a lápis de cor cinza sobre papel e uma pintura de Tarsila do Amaral, duas águas-fortes de Carybé, um desenho a tinta sobre papel de António de Alcântara Machado (Totó), um desenho de Del Pino, uma ilustração de Euclides L. Santos e uma gravura de Santa Rosa para a capa da segunda edição, publicada em janeiro de 1937 pela José Olympio Editora com mil exemplares. A força de “Macunaíma” continua sedutora, oito décadas depois, e ainda inspira leituras diversificadas.
Autêntico ícone modernista brasileiro, “Macunaíma” inspirou também o saudoso artista plástico mineiro Arlindo Daibert (12/8/1952 – 28/8/1993) e ganhou adaptações no cinema e no teatro no Brasil. Em 1969, a obra foi filmada pelo cineasta Joaquim Pedro de Andrade, utilizando, sempre que possível, as palavras do livro. Eduardo Escorel assinou a montagem, Carlos Alberto Prates Correia foi o assistente de direção e no elenco despontavam Grande Otelo, Dina Sfat, Paulo José, Milton Gonçalves, Jardel Filho, entre outros. E, em 1978, o encenador Antunes Filho dirigiu uma premiada adaptação teatral do Grupo Pau Brasil e de Jacques Thiériot, tendo como cenário a floresta amazônica em meio a sons de água e barulhos de pássaros, de ramagens e de animais. Essa rede mágica sonora ambientava toda a ação das personagens.
Agora, em 2008, a cantora Iara Rennó lança o CD “Macunaíma Ópera Tupi” -”Macunaó.perai.matupi” (Petrobras – MinC), trazendo músicas de sua autoria a partir de letras extraídas de trechos da obra de Mário de Andrade. A cantora afirma que as formas da música popular folclórica do Brasil se misturam com a música contemporânea que ela ouviu. A partir daí, diz Iara, surgiu este disco, conservando e corrompendo a tradição, colando e recriando, bem ao gosto do poeta e ao sabor da obra, “na fala impura”.
O disco conta com diferentes produções em cada música, articulando artistas como Siba, Kassin, Moreno Veloso, Benjamin Taubkin, Beto Villares, Alexandre Basa, Maurício Takara, Daniel Ganjaman, Quincas Moreira e Buguinha Dub. E ainda traz como convidados Tom Zé, a banda Fuloresta, Arrigo Barnabé, Dante Ozetti, Funk Buia, Barbatuques, Tetê Espíndola, Toca Ogã, Da Lua, Bocato e Anelis Assumpção. Segundo Iara, o CD será distribuido em escolas públicas de ginásio e segundo grau em todos os estados do Brasil, como complemento de estudo da obra “Macunaíma – o herói sem nenhum caráter”. O projeto “Macunaó.perai.matupi” ou “Macunaima Ópera Tupi” nasceu a partir de um estudo de “Macunaíma”, quando Iara cursava literatura na faculdade de letras da USP.
Pedro Nava criou os oito guaches a partir de “Macunaíma” para devolver uma provocação do amigo Mário de Andrade, que tinha enviado o livro com a dedicatória: “A / Pedro Nava, / pouco trabalhador, / pouco trabalhador, / o / Mario de Andrade / São Paulo 14 / VIII /28”. Ao aproveitar as páginas em branco da primeira edição, Nava desenhou sua visão de Macunaíma e devolveu-a a Mário estabelecendo um diálogo criativo intenso e vigoroso. Na verdade, muitos anos antes de se tornar o maior memorialista brasileiro, Pedro Nava transitava no desenho com desenvoltura e personalidade instigante. Estes oito guaches são a prova incontestável.
A arte de Arlindo Daibert (também juizforano como Pedro Nava), 14 anos após a morte do artista plástico mineiro, é outro testemunho vivo da ousadia e da inventividade de quem sempre encarnou a criação como um desafio e um estímulo, além de um compromisso com a produção do saber. O legado de Arlindo Daibert deixa explícita a inquietação, a precisão e a afiada percepção de um artista em permanente processo de reflexão sobre a linguagem do desenho. O livro “Macunaíma de Andrade” (Editora UFJF), com trabalhos de Daibert, editado em 2000, representou um verdadeiro mergulho na essência de “Macunaíma” e uma autêntica rapsódia, com direito a novas apropriações e à exploração de muitas outras vertentes.
Assim, a editora prestou não só um tributo à memória de um dos mais significativos artistas brasileiros da segunda metade do século XX como reafirmou a intenção de manter ao alcance do público uma obra impregnada de inquietação do primeiro ao último traço, da primeira à última linha. A interpretação visual de Arlindo Daibert merece ser exposta permanentemente para que mais e mais pessoas vislumbrem toda sua criatividade e, a partir daí, ampliem o debate sobre o papel de Mário de Andrade na renovação da literatura brasileira e como fonte inspiradora e questionadora.
Arlindo Daibert criou 58 imagens em técnica mista, lançando mão do desenho, pintura e colagem, e outros 10 esboços, reafirmando o diálogo com a rapsódia de Mário de Andrade e acentuando a forte influência da matriz geradora marioandradina. A cada nova leitura, seja nas artes plásticas, seja na música, ou cênica, ou ainda cinematográfica, “Macunaíma” permanece oito décadas após seu lançamento como uma matriz expressiva e sedutora. Na apresentação do livro de Daibert, Telê Porto Ancona Lopes diz tudo: “Nessa navegação que se apropria do texto com alta exigência no artefazer, ‘Macunaíma’ se transforma, de fato, em ‘Macunaíma de Andrade Daibert’, soma de universos”. E é exatamente a possibilidade de permitir esse entrecruzamento de universos que faz da obra-prima de Mário de Andrade uma fonte permanente de inspiração, mesmo passados oito décadas da primeira edição.
A relação essencialmente inventiva expressa pelo artista plástico nos desenhos, pinturas e colagens de sua reflexão sobre “Macunaíma”, reafirma o compromisso inventivo de Arlindo Daibert. Toda a força criativa desta interpretação aberta da obra de Mário de Andrade pode ser percebida e acompanhada no Diário de Bordo, que revela como o artista juizforano iniciou um estudo detalhado da obra de Mário de Andrade e passou a se enveredar nas artimanhas de “Macunaíma”, entre 1981 e 1982, para elaborar uma de suas mais intensas séries. Como muito bem ressaltou o jornalista e crítico de arte mineiro Walter Sebastião, ao escrever sobre “Imagens do Grande Sertão - Arlindo Daibert” (Editora UFMG – Editora UFJF), lançado em 1998, a incrível rede de significados elaborada por Daibert exprime a síntese de toda a sua inteligência no manuseio de signos/símbolos e toda a sua habilidade artesanal. Tanto ao se enveredar pela rapsódia de Mário de Andrade quanto pelos caminhos do “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa, Daibert assumiu riscos, enfrentou o desafio de peito aberto e criou uma obra maior, onde a reflexão marca presença em cada momento, com a interpretação do artista plástico abrindo perspectivas novas sobre o original de escritos tão díspares e tão contundentes.
Um artista capaz de deixar fluir uma forte crença na responsabilidade cultural de sua arte, Daibert sempre se recusou ser um mero “produtor de imagens” e defendia como compromisso do artista a produção do saber. Assim, Arlindo não levou em conta o contexto pessoal do escritor Mário de Andrade e não fez uma releitura técnica de “Macunaíma”. Afinal, não se trata de uma ilustração para a obra marioandradina. Na verdade, Arlindo ousou criar sem limitações, tendo como ponto de partida o estímulo literário.
No livro “Macanaíma de Andrade”, o saudoso artista plástico mineiro conseguiu, mais uma vez, romper limites e refletir sobre a linguagem do desenho. O desafio da criação nunca intimidou Arlindo Daibert, pelo contrário, sempre serviu como estímulo. Ao criar as imagens de “Macunaíma de Andrade”, Arlindo Daibert explorou toda a diversidade de situações presente na obra-prima de Mário de Andrade, deixando muito claro que, ao realizar seu trabalho, seja em desenho seja em pintura, ou ainda em colagem, o fundamental era exercitar uma linguagem de encarar o mundo. E ressaltava que não se podia confundir um método de raciocínio com apenas uma produção de imagens. A característica da linguagem gráfica de Arlindo Daibert não poderia deixar de ser a criação da imagem, mas sempre como conseqüência e não como fim de seu projeto. E o artista plástico explicitava este ponto de vista: “O meu projeto não é criar imagens, o meu projeto é refletir sobre as coisas através das imagens”. Isso criou uma dinâmica capaz de não prender a criação de Daibert a nenhuma fórmula gráfica, a nenhum estilo gráfico.
O artista plástico ainda confidenciou: “Eu tenho um estilo de raciocínio e não um estilo gráfico. Os meus estilos gráficos se adaptam às problemáticas que eu estiver refletindo em cada momento”. Este era o grande trunfo de Arlindo Daibert como um artista afiado e afinado como seu tempo. Avesso a concessões e a limitações, Daibert fazia da ousadia de dar um passo à frente o estímulo para continuar caminhando até o infinito. Essa percepção mágica diferenciava Arlindo e está viva e presente em sua arte.
Amigo de Arlindo Daibert e guardião de suas três mais importantes séries reunidas no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro – “Macunaíma de Andrade”, “Imagens do Grande Sertão” e “Alice” –, o colecionador Gilberto Chateaubriand ressaltou a genialidade do artista plástico mineiro: “Arlindo, no seu período de vida, foi talvez o mais completo desenhista que nós tivemos, porque ele aliava não só a habilidade e a técnica do traço, mas também a cultura e a pesquisa. Basta conferir os desenhos surrealistas do início da carreira, como também os de fundo mais histórico e narrativo, e até os que traziam um contingente autobiográfico”. Em seu pouco tempo de vida, Arlindo deixou uma obra expressiva e consistente tanto qualitativamente quanto quantitativamente. É justamente aí, segundo Chateaubriand, que se observa sua genialidade, porque era um criador frenético e sempre decidido.
Ao receber da família de Daibert a série “Imagens do Grande Sertão”, após a morte do artista plástico mineiro, complementando o acervo em sua coleção de arte contemporânea, Chateaubriand revelou: “É com muita emoção e muita saudade que recebi esta obra, porque uma das últimas visitas, senão a última visita, que recebi de Arlindo foi justamente para me dizer que fazia absoluta questão que a série sobre o livro ‘Grande Sertão: Veredas’, finalmente, compusesse a trilogia com os trabalhos que eu já tinha dele. E que eu destinasse sempre os trabalhos para o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, o MAM, onde ele sempre mereceu uma acolhida generosa”.
O poeta e pesquisador Júlio Castanõn Guimarães, no livro “Caderno de Escritos” (Sette Letras), afirmou que o artista, tendo iniciado brilhante carreira no início dos anos 70, impôs-se logo pelo virtuosismo de seu desenho. “Nos cerca de 20 e poucos anos em que desenvolveu sua atividade, incorporou a esse traço inicial uma série de outras peculiaridades, em que se destacava a permanente discussão da própria criação artística”. A importância de Arlindo Daibert como artista plástico, segundo Júlio Castanõn, já foi devidamente - embora não suficiente - ressaltada, não só pela sua curta trajetória, mas também pelo reconhecimento dos principais críticos de arte do país.
Sua intensa e múltipla produção era acompanhada de (e refletia) uma permanente preocupação com questões que ultrapassam os limites da técnica, ressaltou Castanõn: “A reflexão, a indagação, a especulação sem dúvida foram determinantes em seu percurso. Dos bicos-de-pena iniciais, ligados a uma tendência ao fantástico, até os objetos de fria e violenta elaboração conceitual, o caminho não envolveu apenas um arrojo de pesquisa, mas também um embate com a noção mesma de produção artística”.
“Um franco atirador que jamais erra o alvo”. Assim, o jornalista, crítico de arte, ex-secretário estadual de Cultura em Minas Gerais e atual prefeito da histórica Ouro Preto, Angelo Oswaldo, definiu o artista Arlindo Daibert, lembrando que ele enfatizava a individualidade como condição imprescindível numa época de padronização e massificação da própria subjetividade. “Incentivador de projetos à sua volta, na qualidade de professor da Universidade Federal de Juiz de Fora e curador de exposições, alimentava o crescimento de valores novos, ao mesmo tempo em que reabastecia para o desafio da criação”.
Amigo e conhecedor de sua obra, Angelo Oswaldo considera Arlindo Daibert um dos mais importantes artistas da contemporaneidade brasileira. “A morte dele interrompeu uma trajetória que nos levaria definitivamente a uma das obras mais significativas do século XX”. E ressalta, ainda, que o artista foi responsável por ter colocado Juiz de Fora como um centro de referência de vanguarda no cenário artístico nacional.
A interação entre a literatura e visualidade, ponto essencial da proposta artística de Arlindo Daibert, é apontada por Angelo Oswaldo como uma contribuição ímpar: “Há um processo de integração entre a literatura e a visualidade - que ele soube resolver muito bem - em que a força da linguagem se transforma na grande energia autônoma da expressão visual. Ele conseguia extrair a poética da literatura e dar suporte à sua expressão visual, sem violentar a autonomia da imagem”. Segundo Angelo Oswaldo, a obra visual de Daibert deve um tributo à literatura, mas é também autônoma, pois cria sua linguagem própria a partir de símbolos literários. “Dentro das artes plásticas brasileiras, talvez seja a obra mais intelectualizada, porque Arlindo trouxe para o campo da criação plástico visual toda a sua rica cultura nas áreas de literatura, lingüística e filosofia”.
Daibert abordava de maneira singular, como desenhista, pintor, criador de objetos e instalações, obras de autores como Mário de Andrade, Murilo Mendes, Guimarães Rosa e Lewis Carroll, entre outros. Além do legado artístico, em termos de acervo, Arlindo deixou um trabalho muito importante para a cultura de Minas Gerais e do Brasil, contribuindo, de modo especial, para a revalorização da presença do poeta Murilo Mendes (1901-1975) no país e para a instalação em Juiz de Fora do Centro de Estudos Murilo Mendes, atual Museu de Arte Murilo Mendes, instituição da Universidade Federal de Juiz de Fora, que abriga a obra e a pinacoteca do poeta juizforano.
(*) Jorge Sanglard - Jornalista brasileiro, pesquisador e organizador da antologia “Poesia em Movimento”
(Continua)

6 comentários:

J.BOSCO disse...

Mário de Andrade é o meu favorito, lembro de uma bela e inteligente frase dele:" A pobreza inibe".
Macunaíma é a cara do Brasil!!!
abs

TS disse...

Se isto é só uma parte... imagina o tamanho da coisa!... bem, o Mariozão merece! vamos ao banquete dele, mesmo inacabado...

Liber, tô numa Lan... puxando cabelos por conta daquele meu empreendimento... já despachei uma parte... meu PC tá ruim, conexão falhando... teclas faltando... ai, e ainda dizem q brasileiro é preguiçoso! espero q tenha passado sua gripe e no próx. ano deixe a vergonha de lado e tome vacina!
Lindas suas ilustras, não dá prá comentar ca]a uma... beijins, desligo, câmbio....

LIBERATI disse...

Caro companheiro de traço J.Bosco, quando eu morava em Sampa, sempre passava perto da casa que foi dele quando ia para a casa de minha avó.
Grande abraço

LIBERATI disse...

Querida Tinê, o Mário merece muitas celebrações e o Jorge Sanglard foi fundo. Para quem se interessa pelo estudo de Macunaíma é uma preciosa contribuição. Boa sorte aí com seu PC e com seu empreendimento.
bjs
Bruno

ze disse...

a melodia da música que tem a frase 'mostra a cobra e dá um nó' samba enredo , enraíza-se profundamente enquanto melodia. Moisés e a vara que virava cobra, serpente, diante do Faraó. Talvez o nó seja Moisés Faraó. ou o do bambu. yin / yang. o caduceu de Esculápio, Asclépio (mesmo nome), símbolo da Medicina até hoje. o texto está eruditíssimo. parabéns. felicidades.

LIBERATI disse...

O Sanglard é sensacional!
abraço