20.6.08

Crônica da Tinê "Pés de moleca retornam à roça"


Tios maternos ocupavam a mesa de jantar para armar as buchas nos balões. Criança fazia guirlanda com revista velha e bandeirinhas de papel seda. Menina da zona sul carioca ia a casa da tia-avó em Campo Grande ou a dos tios paternos em Marechal Hermes para o folguedo entre primos. Contos de Santo Antônio e São João em compactos de 45 rotações na vitrola portátil da vizinha. Cantigas de roda. "Ô pisa o milho, peneirou, Xerém."

Crianças pediam caixa de estalinhos para pregar peça nos outros, atormentar professora em sala de aula, matar de susto os distraídos. O padrinho dava bombinhas junto a mil explicações para não se queimarem. Com uma moeda de 200 cruzeiros comprava-se no jornaleiro estrelinhas de pólvora e gastávamos tudo antes da festança. Ensaiávamos todo dia a quadrilha para a escola. Plac, plac, plac, plac - batíamos pés com força no tablado enquanto tias berravam "AVANCÊ!" - além de decorar a fala do frade balofo, do sacristão cegueta, do noivo bebum, da noiva desdentada, do polícia maneta, do balir, do mugir, do urrar da bicharada que falava como gente no texto teatral. Tudo pronto, caminho da roça!

"ANARRIÊ!" Pratos de alumínio. Galinhada, feijão tropeiro, arroz de carreteiro. Viver a noite em volta da fogueira até o sol raiar. Batatas-doces assadas que a gente comia com melaço de cana escorrendo entre os dedos. Doces "de colher": batata-roxa, abóbora, chuchu com abacaxi. Milho verde com sal e manteiga. Cocadas pretas. Torta de banana com canela. Bolo de aipim bem molhado no leite de coco para não grudar no céu da boca. Teve uma dona que fez bombocado de cupuaçu - até então desconhecíamos o tal fruto mas todos achamos “danadu di bão”. A vó mexia a colher de pau no canjicão: milho branco, leite, açúcar, coco, amendoim, canela e cravo. Quentão, só para adultos. A mãe fazia cuscuz de tapioca em terrina de barro, com bastante coco ralado, enquanto tomava vinho tinto de garrafão - ela ria, ria, não parava de rir, os dentes faiscavam no rosto afogueado.

"LÁ VEM TORÓ!" As meninas vestidas de maria-mijona feita de chita e rendas e fitas. Cores berrantes. Anáguas para encorpar. Permitiam-nos usar batom e ruge nas bochechas. Para os meninos, calça remendada com retalhos descombinados, bigode, cavanhaque e costeletas desenhados com esmero a lápis cosmético. Chapéu de palha e botas de cano curto ou os medonhos sapatos ortopédicos. As mulheres mais velhas alertavam que os meninos sem chapéu no sereno o tempo todo iam pegar bronquite. Caladas, as mães traziam nas bolsas linimento canforado e gorros de lã para filho nenhum dar trela às avós.

"SACI ENTRA NA RODA!" Era o momento que os moleques esperavam para soltar diabo-doido no chão entre os pés das meninas. Elas gritavam, suspendiam as saias e pulavam de medo, dava para ver as ceroulas com babados e lacinhos. Para acabar com a balbúrdia, acendiam os rojões e a girândola num grande final de "ÓIA A COBRA!".

Na manhã seguinte, cinzas espalhadas, pequenas caras borradas diante de uma tigela de curau. "Do que você mais gostou?", perguntaram gentis. Sonada mas ainda em tom de festa, a moleca respondeu: "Asveis dus doce, asveis du sanfonêro".
O melhor era o calor que vinha da fogueira misturado ao das pessoas. Era como adormecer num grande regaço de mãe e sonhar sem parar . Era curioso ver os adultos a cantar e brincar como crianças. Era gostoso ouvir os estalos da resina da lenha que queimava e atirava fagulhas para o alto. Era divertido ver as formas incertas que dançavam nas chamas. Branco, amarelo, alaranjado, vermelho, não havia limite definido entre cor e forma, razão e emoção. Num jogo secreto de resistência eu ia devagar, perigosamente, quando não mais suportava a quentura da fogueira que vinha pinicar a pele - o fogo fascinava mais do que estrelas cadentes que, diga-se de passagem, foram muitas naquela época até o círculo mágico se desfazer sob a garoa.
Tinê Soares - 18/6/2008
NR: A ilustração também é da Tinê

8 comentários:

Unknown disse...

Cê esqueceu do cachorro, que apelidamos de fogueteiro porque se escondia debaixo da cama, com medo do barulho...
E também do buscapé que entrou na bota do Mauro...
Ô tempo bão, sô!

Anônimo disse...

Bacana.
Mil calorias por colherada.
Quanto à moeda... jogando a inflação em cima... sem comentários.
Buscapé é aquela família do seriado?
M.R.L.

Sara Simões disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Sara Simões disse...

Adorei seu texto... singelo.

Cheguei a sentir o cheiro das comidas.

Fiquei com fome.
Parabéns.

ze disse...

zabumba, triângulo e sanfona.

Anônimo disse...

Tinê! Realmente esta tradição junina nossa não perdoa nenhuma região. Aqui no nordeste a coisa sempre pega fogo, literalmente. Belo texto, com cheirinho de fogueira e milho assado.

Anônimo disse...

Eita rem bão demais da conta esse negócio de festança na roça...e seguindo suas palavras...me veio à tona toda minha infência...e já menina moça, fui princesa das festas juninas, lá pras bandas de Guarujá... rainha era o sonho, mas não deu não... os votos na hora de contar, deu mais pra menina de lá... mas a alegria foi tanta, que nunca mais se esquecemos...os passos da quedrilha ainda estão nos ouvidos...e alegria ainda no cantinho das saudades lá no fundo do coração...mas todo ano...hevemos de lembrá... Preparar para o desfile - primeiro as damas - agora os cavalheiros - seus lugares - preparar para o galope - começar - seus lugares. Changê de damas - changê de cavalheiros - anavantur - anarriê - balancê - grande roda - preparar para o granchê - começar - retournê, grande roda à direita e à esquerda - preparar para o túnel - começar - grande roda - balancê na grande roda - preparar para o caracol - começar - retirê - c`est fini... Grande Tinê... foi bão demais...este recorde...amiga beijos...e hoje tem quadrilha lá no meu arraiá...te espero...

sizenando disse...

outro dia assisti a uma reunião de professores de uma escola pública, aqui em sampa(digo pública pra constar, informar); discutiam se deveria ou não haver festa junina na escola. decidiu-se por fazer, era pedido de vários alunos, mas seria coisa simples: só pros alunos, numa sexta feira, comidas e bebidas adaptadas do que havia na cantina da escola. Só que tinha uma coisa: teria de ser uma festa deles, a música ao gosto deles, portanto. a vice-diretora disse então que seria na base do "funk e hip hop" porque "eles" não gostam de quadrilha! E partiram pra organizar a comissão dos festejos.