19.4.08

Hobsbawn, Globalização, Democracia e Terrorismo


(Esta resenha foi publicada por Jorge Sanglard (*) no jornal O Primeiro de Janeiro "das Artes das Letras" do Porto, Portugal)
Através do olhar de Eric Hobsbawm
Ensaios para Compreensão de um novo Século


Um dos historiadores mais respeitados e mais incisivos do século XX e deste início de XXI, Eric Hobsbawm lançou em Portugal e no Brasil o livro de ensaios "Globalização, Democracia e Terrorismo" (Presença e Companhia das Letras), onde lança um feixe de luz para compreensão da conjuntura internacional e explica porque estes primeiros anos do novo século já oferecem um quadro sombrio, ou mesmo sinistro, para grande parte dos que vivem de salários provenientes dos seus empregos nos velhos "países desenvolvidos", situação que não antecipa a perspectiva de uma era de estabilidade política e social. A perspectiva de um século de paz é remota, declara o ensaísta. Enfático, o escritor também afirma: "A era dos impérios está morta. Teremos de encontrar outras maneiras de organizar o mundo globalizado do século XXI".

"Globalização, Democracia e Terrorismo" traz 10 textos, escritos entre 2000 e 2006, a partir de conferências e palestras, que sintetizam as idéias do pensador inglês, nascido em Alexandria em 1917 e com formação na Áustria, na Alemanha e na Inglaterra, com ênfase na análise das questões que interferem na democracia, como as guerras, a violência urbana, o imperialismo e a ação das organizações transnacionais, além das consequências trágicas do terrorismo. O livro é um soco no estômago da acomodação e é um convite à reflexão sobre que século estamos construindo.
Já na apresentação do livro, Hobsbawm adverte: "O século XX foi a era mais extraordinária da história da humanidade, combinando catástrofes humanas de dimensões inéditas, conquistas materiais substanciais e um aumento sem precedentes da nossa capacidade de transformar e talvez destruir o planeta - e até de penetrar no espaço exterior". O próprio historiador questiona: "Qual é a melhor maneira de refletir sobre essa 'era dos extremos' e imaginar as perspectivas da nova era que surge a partir da antiga?". Para, em seguida, afirmar que estes curtos ensaios suplementam e atualizam o que escreveu, principalmente, em "Era dos extremos", na entrevista sobre "O novo século" com o jornalista italiano Antonio Polito e em "Nações e nacionalismo desde 1780".
Assim, os estudos de Hobsbawm focalizam cinco conjuntos de temas que requerem "um pensamento claro e bem informado": a questão genérica da guerra e da paz no século XXI, o passado e o futuro dos impérios globais, a natureza e o contexto cambiante do nacionalismo, o futuro da democracia liberal e a questão da violência política e do terror. Tudo isso "num cenário mundial dominado por dois desenvolvimentos correlatos: a aceleração enorme e contínua da capacidade da espécie humana de modificar o planeta por meio da tecnologia e da atividade econômica e a globalização".
Mas, infelizmente, assegura o historiador, o primeiro deles não produziu até aqui um impacto significativo sobre os que tomam as decisões políticas. "A maximização do crescimento econômico continua a ser o objetivo dos governos, e não existe ainda uma perspectiva realista para que se dêem passos efetivos que nos permitam enfrentar a crise do aquecimento global". E Hobsbawm enfatiza: "O avanço acelerado da globalização - ou seja, o mundo visto como um conjunto único de atividades interconectadas que não são estorvadas pelas fronteiras locais - provocou um profundo impacto político e cultural, sobretudo na sua forma atualmente dominante de um mercado global livre e sem controles".
Esta globalização acompanhada de mercados livres, na opinião do escritor, trouxe consigo uma dramática acentuação das desigualdades econômicas e sociais no interior das nações e entre elas. Para Hobsbawm, não há indícios de que essa polarização não esteja prosseguindo dentro dos países, apesar de uma diminuição geral da pobreza extrema: "Este surto de desigualdade, especialmente em condições de extrema instabilidade econômica como as que se criaram com os mercados livres globais na década de 1990, está na base das importantes tensões sociais e políticas do novo século".
Outro ponto abordado pelo historiador é o impacto dessa globalização para os que menos se beneficiam dela: "Daí provêm a crescente polarização de pontos de vista a seu respeito, entre os que estão potencialmente protegidos contra seus efeitos negativos - os empresários, que podem reduzir seus custos utilizando mão-de-obra barata de outros países, os profissionais da alta tecnologia e os formandos em cursos de educação superior, que podem conseguir trabalho em qualquer economia de mercado de alta renda - e os que não estão".
Assim, Hobsbawm explica porque este início de século XXI oferece um quadro sombrio, para não dizer sinistro, para a maior parte dos que vivem de salários provenientes dos seus empregos nos velhos "países desenvolvidos". Afinal, o mercado livre global, segundo o historiador, afetou a capacidade de seus países e sistemas de bem-estar social para proteger seu estilo de vida. E o pensador enfatiza: "Em uma economia global, eles competem com homens e mulheres de outros países que têm as mesmas qualificações, mas recebem apenas uma fração dos salários vigentes no Ocidente e sofrem nos seus próprios países as pressões trazidas pela globalização do que Marx chamava 'o exército de reserva dos trabalhadores', representado pelos imigrantes que chegam das aldeias das grandes zonas globais de pobreza". Situações como estas, do ponto de vista do historiador, não antecipam uma era de estabilidade política e social.
Hobsbawm ainda argumenta que "embora a escala real da globalização permaneça modesta, talvez com a exceção de alguns países em geral pequenos e sobretudo na Europa, seu impacto político e cultural é desproporcionalmente grande". Nessa medida, a questão da imigração permanece um problema político substancial para a maior parte das economias desenvolvidas do Ocidente.
O historiador esclarece que o período abordado nos ensaios tem sido dominado pela decisão tomada pelo governo dos Estados Unidos, em 2001, de afirmar uma hegemonia unilateral sobre o mundo, condenando convenções internacionais até então aceitas, reservando-se o direito de fazer guerras de agressão ou outras operações militares sempre que o desejasse e levando-as à prática. E Hobsbawm faz questão de deixar bem claro que estes ensaios foram escritos por um autor que tem críticas profundas a esse projeto: "Isso se deve em parte à força e à indestrutibilidade das minhas convicções políticas, que incluem a hostilidade ao imperialismo, seja o das grandes potências que afirmam estar fazendo um favor às suas vítimas ao conquistá-las, seja o do homem branco que pressupõe, para si próprio e para os arranjos que faz, uma superioridade automática sobre as pessoas cuja pele tem outra cor. Deve-se também a uma suspeita racionalmente justificável contra a megalomania, que é a doença ocupacional dos países e dos governantes que crêem que seu poder e seu êxito não têm limites".
O primeiro ensaio do livro, intitulado "Guerra e paz no século XX" tem já na primeira frase uma síntese dramática do que foi o século passado: "O século XX foi o mais mortífero de toda a história documentada". E Hobsbawm esclarece: "Seria mais fácil escrever sobre o assunto da guerra e da paz no século XX se a diferença entre ambas tivesse permanecido tão clara quanto se esperava ao começar aquele século, nos dias em que as Convenções de Haia de 1899 e 1907 codificaram as regras da guerra". Existe agora, como durante todo o transcurso do século XX, na avaliação do historiador, uma ausência total de qualquer autoridade global efetiva que seja capaz de controlar ou resolver disputas armadas. Assim, a globalização teria avançado em quase todos os aspectos - econômico, tecnológico, cultural, até linguístico -, menos um: "do ponto de vista político e militar, os Estados territoriais continuam a ser as únicas autoridades efetivas".
E o autor finaliza o ensaio com um prognóstico: "no século XXI, as guerras provavelmente não serão tão mortíferas quanto foram no século XX. Mas a violência armada, gerando sofrimentos e perdas desproporcionais, persistirá, onipresente e endêmica - ocasionalmente epidêmica -, em grande parte do mundo". E sentencia: "A perspectiva de um século de paz é remota".
No segundo artigo, o ensaísta aborda a questão da guerra, da paz e da hegemonia no início do século XXI e é enfático: "Não podemos falar sobre o futuro político do mundo, a menos que tenhamos em mente que estamos vivendo um período em que a história, ou seja, o processo de mudanças na vida e na sociedade humana e o impacto que os homens impõem ao meio ambiente global, está se acelerando a um ritmo estonteante". E não deixa por menos: "Neste momento, ela está evoluindo a uma velocidade que põe em risco o futuro da raça humana e do meio ambiente natural".
O terceiro ensaio é sobre as diferenças entre a hegemonia dos Estados Unidos e do Império Britânico, e o quarto artigo aborda o fim dos impérios. Aqui, Hobsbawm declara com toda ênfase: "A era dos impérios está morta. Teremos de encontrar outras maneiras de organizar o mundo globalizado do século XXI". O quinto texto é um painel sobre as nações e o nacionalismo no novo século, onde o historiador avalia o surgimento de uma era de instabilidade internacional com início em 1989, cujo fim ainda não pode ser previsto.
No sexto ensaio, o autor traça as perspectivas da democracia e, no sétimo, a questão é a disseminação da democracia. O terror é o tema do oitavo artigo e o nono ensaio discute a ordem pública em uma era de violência. Hobsbawm finaliza o livro com um texto sobre como o império se expande cada vez mais e afirma: "a política da nossa época é de natureza complexa". Contundente, declara: "É impossível prever a duração da atual superioridade americana. A única coisa que temos certeza absoluta é que se trata de um fenômeno historicamente temporário, como ocorreu com todos os impérios. No período de nossa vida vimos o fim de todos os impérios coloniais, o fim do chamado império dos mil anos dos alemães - que durou apenas doze - e o fim do sonho da União Soviética de liderar uma revolução mundial".
Como se vê no conjunto do livro, o autor ressalta que a história tem muito poucos atalhos, lição que o próprio autor aprendeu por ter vivido durante grande parte do último século e pensado a respeito. Afinal, são 90 anos vividos para a reflexão e a defesa de suas convicções.
(*)Jorge Sanglard - Jornalista brasileiro, pesquisador e organizador da antologia "Poesia em Movimento"

Um comentário:

ze disse...

na guerra descrita no Mahabharata o número de mortos é 1 bilhão e seiscentos milhões; sobreviventes são vinte e sete mil, conforme o escrito no livro. como é dito a humanidade já se destruiu muitas vezes. a consciência disto é que falta: achamos a tecnologia coisa inédita, e não é. Sempre houve 'ban de magus', terra de magos que raptam a rainha, alma do reino. a mágica da tecnologia sempre existiu. a soberba que vem junto também. muitas vezes já antes. o ser humano se repete. há que fugir do samsara, cf. dizem os hindus.