20.4.08

Crônica da Tinê - Que bicho é esse?


Cinco minutos imóvel. Depois de oscilar o corpo como se estivesse apertada para ir ao banheiro, sondar em volta à procura de conhecidos, trocar os óculos de longe para perto, recontar o número de pessoas, vistoriar os que não dão um passinho à frente, dona Lalá não se contém e suspira tão alto que todos a olham. Ela dá de ombros. No salão-aquário os peixes se movem com lentidão até baterem a boca no vidro do guichê. Se fosse um golfinho, ela dormiria ali com um lado do cérebro enquanto o outro lado ficaria atento ao "Próximo!". A fila se enrosca entre as colunas. Um par de pernas em cada segmento desse corpo esquisito que parece mas não é, pois se fosse não estaria ali. Lacraia d'água? Sem se dirigir a alguém específico, depois do muxoxo inicial dona Loló comenta que o atendimento demora, os eletrônicos estão desativados, e daí pulou para a diferença entre burrice e ignorância, a mania que as pessoas têm de qualificar os outros com nome de animais conforme seus predicados, ou na falta deles. Ô lesma! Nesse ponto, o ser invisível com quem dona Lelé falava se transforma em três ou quatro desconhecidos em bate-papo. Quase um coral. Com olho de gavião ela rastreia o leão no bolso, o bode na sala, a mosca na sopa, o pinto no lixo, o boi na linha e a lagartixa atrás da porta - esta, creio, uma expressão inventada por ela para aquele que fica sempre à espreita sem se mostrar, como aquele guarda atrás do vaso de palmeira a enfeitar a porta do gerente. Para destoar do conjunto, há um leitor discreto, alheio à impaciência geral, além dos autofalantes indiscretos ao celular e, claro, bebês chorões para espantar o marasmo coletivo. O burburinho ecoa de parede a parede, gente borbulhante querendo vir à tona. Faz calor. Se a cobra não fuma, a onça vai beber água. As comparações zoológicas permitem puxar temas variados e formar novos grupos de conversa. Depende da hora. Dona Lulu sabe pelos rostos se o povo ali veio antes ou depois do almoço, se o gato quer mingau ou quer dormir. Isso determina o interesse por este ou aquele assunto. Ou o silêncio total. Tem gente que não fala com estranho de jeito nenhum. Por mais bonito que seja o pé do pavão. Se o papo pega e lhe pedem opinião, ela responde evasiva - uma dama nunca fala o que realmente pensa... É como jogar isca no meio do rio: a única certeza é a de que um baiacu não será fisgado apesar de, se estiver perto da desembocadura, haver tubarões que invadem a água doce, os furões de fila. Quando atrás dela um grupo se animou com querelas orientais, e outro da frente encetou um papo cri-cri, ela se distanciou das conversas paralelas, reparou que o saguão seria perfeito para dançar quadrilha, pares não faltariam e todos cantariam "para dentro e para fora, mais um, mais um...", ou dança das cadeiras perfiladas no centro até que a campainha soasse para atender quem ficou de pé. Blinnng, blinnng. Então o caixa com boca de tracajá a atendeu, dona Lili agitou os carnês como se estes fossem asas de seriema, conferiu o troco e saiu lépida pela porta giratória, nem ouviu perguntarem "Qual era mesmo o nome dela?"
Tinê Soares – [16/4/2008 -18:52:42]

7 comentários:

Sizenando disse...

lalá, loló, lulu. acabei de ler, tinê.

já as encontrei, encontro sempre:
quando estou fazendo minha ginástica - faço alongamento de fila semanalmente - sou um desses de livro ou revistinha na mão. quando esqueço de levar algo pra ler, fico analisando cuidadosamente meus dois pés enquanto não sou o próximo a ser o próximo.

obrigado pelo texto, tinê, obrigado pelo espaço pra crônica, liberati!

TS disse...

Ainda bem que eu não sou a lelé, no máximo a samba-lelê... "alongamento de fila" é ótimo.

Eu que agradeço aos dois: o fã de Darius Millaud e o nosso blogueiro generoso.

Hoje é dia de Tiradentes, o Inconfidente Mineiro que perdeu a cabeça no Campo de Santana, no Rio de Janeiro.
Bjj

ze disse...

Tinê, daí ter lojas de cordas posto que enforcado foi na rua da Carioca: cortado o corpo em pedaços e espalhado pela trilha real antiga até Minas. Espalhado em pedaços, Tiradentes, como um Gigante dos textos antigos, de onde surge a cultura, a Revolução, do Povo, pelo Povo e para o Povo. Tinê a crônica está super: a fila nas colunas e os bichos todos. Tinê, a dama surge no tabuleiro quando o peão atravessa-o todo, o tabuleiro. O peão que atravessa o mundo. As damas são muitas como as Minas, com cara de Velha. Eu sou o louva-deus. Cotovelos unidos na prática.

Anônimo disse...

Que bico é este? Um monstro pré-histórico que nem as "mais avançadas tecnologias" ainda não conseguiram extinguí-lo. Aliás, parece aumentá-lo, e não vou saber explicar os porquês. E pior... tem gente que gosta (rs). Lembrei-me de uma época em que os aposentados da prefeitura preferiram não receber o contracheque em casa. O prazer deles era ir até lá no guichê, enfrentar a fila, pois era ali, uma vez por mês que se encontravam para ter notícias, rever amigos, notar a presença (ou a triste ausência) de uns e outros. Mas esta já é uma outra crônica... (rs). Bjos.

Anônimo disse...

ERRATA (mas nem tanto) Bico não: Bicho... mas, na verdade, fez diferença? :)

TS disse...

Zé, agora são os chinas que vendem cordas e cadarços na Cidade Velha; seja um louva-deus com cuidado: a dama arranca a cabeça e termina o jogo em cheque-mate.

ED, a juventude acumulada tem fila própria, alguns levam tabuleiro de damas e até improvisam um clube sócio-esportivo, é verdade.

Abraços.

ze disse...

o pai morre para que o filho viva na família louva-deus. gente que se sacrifica.