1.2.08

Crônica da Tinê - A Pequena Mandarim


Nem todo brasileiro gosta de samba e café, Carmem Miranda e acarajé. No meu tempo, sim, havia carnaval de verdade, reclamava a vó enquanto pregava os paetês.
"Quem foi que inventou o Brasil? Foi seu Cabral! Foi seu Cabral! No dia vinte e um de abril, dois meses depois do carnaval."
Os moradores das vilas se juntavam em modestos blocos de família, dizia a vó ao franzir os tules. Ela adorava Rui Barbosa, Carlos Gomes e Lamartine, eu não entendi por que ela citou o Rui, mesmo depois de ela ter explicado que ele dominava as letras... Bom, ela foi do tempo do entrudo, dos corsos e da água-de-cheiro.
"Depois Ceci amou Peri, Peri beijou Ceci ao som do Guarani!"
Pés no pedal, a vó girava a roda e botava a Singer a cantar o seu refrão metálico nos cetins, e só parava para ela mesma entoar um pedacinho do canto chiado no rádio, com os olhos voltados para o teto, para se concentrar na própria voz. A costura escapulia da agulha, ela endireitava e continuava... Quase todo cortiço tinha sua roda de samba. Pandeiro, sanfona e tamborim. Um violão ali. Um cavaquinho lá. O ritmo grave vinha das pontas dos dedos nas caixas de feira ou dos punhos no tampo das mesas. Talheres batidos de leve nos copos semicheios davam o ritmo agudo.
"Do Guarani ao guaraná surgiu a feijoada e mais tarde o Paraty."
As fantasias de bloco eram simples: um lençol amarrado na cintura, máscara, touca de meia com peruca de lã, ou uma malha de listras, calças largas, chapéu coco e uma bola no nariz. Ah, como era bom! Uma época em que o entusiasmo contagiaria o sujeito mais desafinado e desritmado que houvesse. Quem por ali passasse de mal-humor, sorriria e continuaria o seu caminho assobiando.
"Depois Ceci virou Iaiá, Peri virou Ioiô."
Da zona norte à zona sul, todos sabiam as letras na ponta da língua. Além dos diários pessoais, toda moça tinha de criar o seu caderno de música. Boleros dor-de-cotovelo, tangos angustiantes, modinhas, em português, castelhano, francês, italiano. As eruditas se esmeravam na caligrafia ao copiar trechos de óperas, Nabuco, Norma, Ninon, além do hinário nacional - era chique incluir a Marseilleuse assim como era de bom tom registrar o God Saves America - pois já não bastava o 'savoir-faire', já se impunha o 'know-how'.
"De lá pra cá tudo mudou!"
Especial atenção era dada às marchinhas. Ao folhear o que fora feito pela filha da avó, as páginas eram ilustradas com cantores do rádio recortados de revistas e colados a goma-arábica, aquele cheiro inebriante, um perfume encadernado. A vó pendurou no cabide o seu trabalho. Depois do escarcéu em não querer fantasia de mucama, a Sherazade da neta ficara pronta para o baile do clube. Para ir assistir o desfile na fervilhante avenida, seria outra. Paulinho, o amigo da escola, apareceu de malandro ‘vesti-uma-camisa-listrada-e-saí-por-aí’. Lá foram eles, levados pelo boêmio padrinho da menina.
"Passou-se o tempo da vovó, quem manda é a Severa e o cavalo Mossoró."
Não sou carnavalesca, prefiro chá, pimenta me faz mal, das Miranda escolheria a Aurora, sem bananas na cabeça. Mas daquele carnaval na Praça Onze ficou uma cena memorável: entre um malandrinho carioca e um malandrão francês de boina e lenço ao pescoço, eu pulava de mandarim estilizado em tecido quadriculado, cor-de-rosa do chapéu em cone até às chinelas; me puseram em cima de uma caixa de correio para ver melhor o cortejo; então tirei da bolsinha de palha meu estojo-carnaval: confetes, serpentinas, lança-perfume em frasco dourado e, aos berros, sobre aquela selva agitada de onças-pintadas, cantava:
"É o samba Ioiô, é o samba Iaiá, é o Bafo da Onça que acabou de chegar!"

[Tinê Soares - 28/1/2008 - 18:44:33]
(N.R- A foto também é da Tinê)

6 comentários:

ze disse...

Rimsky-Korsakov fez a 'Sherazad' : opéra e obra de música muito linda. A máquina de costura faz as fantasias todas. Na Praça Onze surge o carnaval mesmo com o samba de Chiquinha Gonzaga : 'O Abre alas...' Confete e serpentina em kit básico: beijo.

Dona Betã disse...

Como sempre, uma beleza.
Um beijão para ela.

Anônimo disse...

Não tinha visto ainda, mas está uma delícia. E ritmada, percebeu? Adorei e me diverti à beça! :)

Anônimo disse...

uma bela lembrança de carnaval emprestada... obrigado.

TS disse...

Rio de Janeiro, Lisboa, Belo Horizonte e Santo André: um bloco prá lá de eclético!

Obrigada e beijinhos em todos.

rodapé:
Liberati, você é o destaque fantasiado de laranjas, ok?

LIBERATI disse...

Querida Tinê, sou um habitante de Orange County, também chamado de Laranjeiras. Um bairro que está se transformando num lugar privilegiado, com uma população de bairro boêmio. Gosto muito daqui.Infelizmente não sai em nenhum bloco, trabalhei nuns textos de encomenda que estão me dando um trabalho danado, mas que faço feliz da vida. Vi o Carnaval na TV. Gostei do samba da Beija-Flor. A chuva prejudicou a minha Mangueira e a minha outra Escola do Coração, a Mocidade Independente de Padre Miguel fez bonito na Avenida. A Portela também desfilou legal.Bloco mesmo é o "Gigantes da Lira" e a música que ouvi com alegria foi a do chorinho na feira de sábado aqui do bairro. Um privilégio - o pessoal tem até CD que vou botar aqui no blogue qualquer dia a capa que é do mestre Cássio Loredano.
bjs